Em primeira instância cumpre dizer que se tem sido
controvertida na doutrina e na jurisprudência aquilo que entre nós se tem
designado por vícios do acto administrativo, não menos o tem sido o próprio
conceito de invalidade, pelo que urge fazer disso o ponto de partida da nossa exposição.
Pugnando
por uma noção ampla, no entendimento do Professor FREITAS DO AMARAL, a
invalidade seria “o vício que afecta o acto administrativo em virtude da sua inaptidão
intrínseca para a produção dos efeitos que devia produzir”, considerando-se
nela incluída a ilegalidade, a ilicitude e os vícios da vontade. Em sentido
contrário, pronunciava-se o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, aduzindo que não
urge proceder à distinção entre ilegalidade e invalidade. É essa a posição que
adoptaremos.
A
ilegalidade traduz a falta de conformidade do acto administrativo com a lei em
sentido material, e que recai sobre qualquer um dos elementos do acto: a
competência, a forma, o objecto ou a causa. Mormente essa desconformidade,
a Teoria dos Vícios, oriunda de França, apresentava as formas
específicas que a ilegalidade do acto podia revestir. De acordo com o, então em
vigor, art 15/1 da LOSTA - Lei Orgânica do Supremo Tribunal
Administrativo - seriam elas:
· Incompetência
· Usurpação
de poderes
· Desvio
de poder
· Vício
de forma
· Violação
da lei
A enumeração era, no entanto, um tanto o quanto infeliz. Ora atente-se: a
autonomização da usurpação de poderes enquanto figura distinta da incompetência
não se justificava, atendendo a que a primeira consubstancia uma modalidade
mais grave da última. “A sua menção ao lado da incompetência revela um erro de
lógica formal, já que parece designar realidades que se excluem” com bem aduz
GONÇALVES PEREIRA. Ora a incompetência, que afecta o acto de cujo autor não
tinha poder legal para o praticar, abrange três subcategorias: a incompetência
relativa (prática de acto pertencente a outro órgão da mesma pessoa colectiva),
a incompetência absoluta (ingerência no âmbito competencial de outra pessoa
colectiva) e a usurpação de poderes (intrusão por um acto administrativo noutra
função estadual, seja ela o poder legislativo, moderador ou judicial). A sua
autonomia tinha mero carácter histórico, prendendo-se com razões atinentes ao
Princípio da Separação de Poderes.
O desvio de
poder traduzia o vício que inquinava o acto administrativo em que existia uma
parcela de discricionariedade, na medida em que se dava da promoção de um fim
distinto daquele para a qual a lei atribui determinado poder, quer por motivo
de interesse público (o caso da Maria da Conceição), quer por motivo de
interesse privado.
Por sua vez, o
vício de forma verificava-se, nestes termos, com a preterição de formalidades
essenciais ou na carência de formal legal. Mas forma e formalidades constituem
conceitos distintos, pelo que, sob pena de deixar de forma as violações do
procedimento, o intérprete e aplicador do direito via-se obrigado a proceder ao
alargamento (forçado) da noção de forma, para que pudesse alegar a falta de
formalidade. (VASCO PEREIRA DA SILVA).
Por último,
surgia o vício da violação de lei, que nas palavras de FREITAS DO AMARAL,
consistia “nas discrepâncias entre o objecto e as normas jurídicas que lhes são
aplicáveis.” Ora, a expressão era tão ampla que, das duas uma: ou se
procedia a uma interpretação restritiva do preceito, fazendo dela a válvula de
escape dos vícios (“a vala comum”, na expressão auto-explicativa de FREITAS DO
AMARAL), onde caberiam todas as ilegalidades insusceptíveis de recondução a
qualquer um dos outros vícios, ou, enquanto vício autónomo e distinto dos
outros, a violação de lei exprimiria a desconformidade do objecto/conteúdo com
o modelo legal.
Não obstante a
amplitude da classificação, a verdade é que havia vícios que inquinavam o acto
que dificilmente se reconduziam a qualquer um dos tipos referidos. Donde, a
falta de causa1 e os vícios da vontade não poderiam ser
arguidos, salvo se se adoptasse a concepção ampla de invalidade do Professor
FREITAS DO AMARAL.
A
questão ganhava especial acuidade mormente a causa de pedir do Contencioso
Administrativo, havendo quem defendesse que os particulares, no âmbito do
recurso de um acto administrativo, teriam de alegar quais os tipos de
invalidade que enfermavam o acto, discriminando a fonte dessa invalidade
(vício) (FREITAS DO AMARAL), e nesse sentido, o objecto do processo era
“espartilhado” pelos vícios arguidos pelos particulares. Em sentido contrário,
pugnava VASCO PEREIRA DA SILVA, afirmando que “a causa de pedir deveria ser,
sem mais, a apreciação integral da actuação administrativa trazida a juízo, de
modo a permitir uma consideração objectiva da legalidade ou ilegalidade do acto
em face de todas as possíveis normas aplicáveis e no que respeita a todas as
fontes de invalidade”. Depois da reforma, o legislador decidiu tomar parte na
querela, transpondo para a lei a segunda orientação, nos termos do art
CPTA, e “em boa hora, afastou expressamente (…) qualquer referência à obsoleta
figura dos vícios do acto administrativo (…)” (VASCO PEREIRA DA SILVA). Não
obstante a pronúncia do legislador, há ainda quem considere que a teoria dos
vícios continua a ter “valor científico e potencialidades explicativas” (JOÃO
CAUPERS e FREITAS DO AMARAL).
Atendendo ao
plano de Direito constituído e mormente o fim de vigência dos preceitos que
faziam referência ao expediente dos vícios, a classificação parece-nos obsoleta
e contrária à lógica de maior garantia dos direitos dos particulares que a
evolução do Direito Administrativo substantivo e adjectivo tem vindo a firmar,
mostrando-se, por conseguinte, mais conforme com o espírito do sistema, uma
verificação cumulativa dos seguintes requisitos de validade: competência,
procedimento, forma e material.
______________________________________
1.
1. Atente-se que o conceito de causa no Direito Administro é
distinto do da Lei Civil. “O acto administrativo tem de toma por base qualquer
situação de facto ou de direito do mundo sensível, (…) e que será o seu
pressuposto. Ora é da apreciação desse pressuposto que surge o objecto do acto.
A causa consiste na relação de adequação entre os pressupostos do acto e o seu
objecto. E então, determinados os pressupostos, de duas uma – ou eles existem
na realidade, e o acto tem causa; ou não existem porque o agente se enganou ou
intencionalmente afirmou a realidade de pressupostos inexistentes para
justificar a sua acção - e o acto está desprovido de causa, faltando-lhe um
elemento essencial.” (GONÇALVES PEREIRA)
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, et al., Código
do Procedimento Administrativo Anotado, 6.ª edição, Coimbra, Almedina,
2007.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito
Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2011.
BOTELHO, José Manuel Santos, et al., Código
do Procedimento Administrativo – Anotado e Comentado, 5ª edição, Coimbra,
Almedina,
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral,
Tomo I, 3ª edição, reimpressão, Publicações Dom Quixote, 2010.
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