sábado, 18 de maio de 2013

Sobre os vícios do acto administrativo



                Em primeira instância cumpre dizer que se tem sido controvertida na doutrina e na jurisprudência aquilo que entre nós se tem designado por vícios do acto administrativo, não menos o tem sido o próprio conceito de invalidade, pelo que urge fazer disso o ponto de partida da nossa exposição.

                Pugnando por uma noção ampla, no entendimento do Professor FREITAS DO AMARAL, a invalidade seria “o vício que afecta o acto administrativo em virtude da sua inaptidão intrínseca para a produção dos efeitos que devia produzir”, considerando-se nela incluída a ilegalidade, a ilicitude e os vícios da vontade. Em sentido contrário, pronunciava-se o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, aduzindo que não urge proceder à distinção entre ilegalidade e invalidade. É essa a posição que adoptaremos.

                A ilegalidade traduz a falta de conformidade do acto administrativo com a lei em sentido material, e que recai sobre qualquer um dos elementos do acto: a competência, a forma, o objecto ou a causa. Mormente essa desconformidade, a Teoria dos Vícios, oriunda de França, apresentava as formas específicas que a ilegalidade do acto podia revestir. De acordo com o, então em vigor, art 15/1 da LOSTA  - Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo -  seriam elas:

·         Incompetência

·         Usurpação de poderes

·         Desvio de poder

·         Vício de forma

·         Violação da lei

       A enumeração era, no entanto, um tanto o quanto infeliz. Ora atente-se: a autonomização da usurpação de poderes enquanto figura distinta da incompetência não se justificava, atendendo a que a primeira consubstancia uma modalidade mais grave da última. “A sua menção ao lado da incompetência revela um erro de lógica formal, já que parece designar realidades que se excluem” com bem aduz GONÇALVES PEREIRA. Ora a incompetência, que afecta o acto de cujo autor não tinha poder legal para o praticar, abrange três subcategorias: a incompetência relativa (prática de acto pertencente a outro órgão da mesma pessoa colectiva), a incompetência absoluta (ingerência no âmbito competencial de outra pessoa colectiva) e a usurpação de poderes (intrusão por um acto administrativo noutra função estadual, seja ela o poder legislativo, moderador ou judicial). A sua autonomia tinha mero carácter histórico, prendendo-se com razões atinentes ao Princípio da Separação de Poderes.

O desvio de poder traduzia o vício que inquinava o acto administrativo em que existia uma parcela de discricionariedade, na medida em que se dava da promoção de um fim distinto daquele para a qual a lei atribui determinado poder, quer por motivo de interesse público (o caso da Maria da Conceição), quer por motivo de interesse privado.

Por sua vez, o vício de forma verificava-se, nestes termos, com a preterição de formalidades essenciais ou na carência de formal legal. Mas forma e formalidades constituem conceitos distintos, pelo que, sob pena de deixar de forma as violações do procedimento, o intérprete e aplicador do direito via-se obrigado a proceder ao alargamento (forçado) da noção de forma, para que pudesse alegar a falta de formalidade. (VASCO PEREIRA DA SILVA).

Por último, surgia o vício da violação de lei, que nas palavras de FREITAS DO AMARAL, consistia “nas discrepâncias entre o objecto e as normas jurídicas que lhes são aplicáveis.” Ora, a expressão era  tão ampla que, das duas uma: ou se procedia a uma interpretação restritiva do preceito, fazendo dela a válvula de escape dos vícios (“a vala comum”, na expressão auto-explicativa de FREITAS DO AMARAL), onde caberiam todas as ilegalidades insusceptíveis de recondução a qualquer um dos outros vícios, ou, enquanto vício autónomo e distinto dos outros, a violação de lei exprimiria a desconformidade do objecto/conteúdo com o modelo legal.

Não obstante a amplitude da classificação, a verdade é que havia vícios que inquinavam o acto que dificilmente se reconduziam a qualquer um dos tipos referidos. Donde, a falta de causa1 e os vícios da vontade não poderiam ser arguidos, salvo se se adoptasse a concepção ampla de invalidade do Professor FREITAS DO AMARAL.

                A questão ganhava especial acuidade mormente a causa de pedir do Contencioso Administrativo, havendo quem defendesse que os particulares, no âmbito do recurso de um acto administrativo, teriam de alegar quais os tipos de invalidade que enfermavam o acto, discriminando a fonte dessa invalidade (vício) (FREITAS DO AMARAL), e nesse sentido, o objecto do processo era “espartilhado” pelos vícios arguidos pelos particulares. Em sentido contrário, pugnava VASCO PEREIRA DA SILVA, afirmando que “a causa de pedir deveria ser, sem mais, a apreciação integral da actuação administrativa trazida a juízo, de modo a permitir uma consideração objectiva da legalidade ou ilegalidade do acto em face de todas as possíveis normas aplicáveis e no que respeita a todas as fontes de invalidade”. Depois da reforma, o legislador decidiu tomar parte na querela, transpondo para a lei a segunda orientação, nos termos do art  CPTA, e “em boa hora, afastou expressamente (…) qualquer referência à obsoleta figura dos vícios do acto administrativo (…)” (VASCO PEREIRA DA SILVA). Não obstante a pronúncia do legislador, há ainda quem considere que a teoria dos vícios continua a ter “valor científico e potencialidades explicativas” (JOÃO CAUPERS e FREITAS DO AMARAL).

Atendendo ao plano de Direito constituído e mormente o fim de vigência dos preceitos que faziam referência ao expediente dos vícios, a classificação parece-nos obsoleta e contrária à lógica de maior garantia dos direitos dos particulares que a evolução do Direito Administrativo substantivo e adjectivo tem vindo a firmar, mostrando-se, por conseguinte, mais conforme com o espírito do sistema, uma verificação cumulativa dos seguintes requisitos de validade: competência, procedimento, forma e material.


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1.       1. Atente-se que o conceito de causa no Direito Administro é distinto do da Lei Civil. “O acto administrativo tem de toma por base qualquer situação de facto ou de direito do mundo sensível, (…) e que será o seu pressuposto. Ora é da apreciação desse pressuposto que surge o objecto do acto. A causa consiste na relação de adequação entre os pressupostos do acto e o seu objecto. E então, determinados os pressupostos, de duas uma – ou eles existem na realidade, e o acto tem causa; ou não existem porque o agente se enganou ou intencionalmente afirmou a realidade de pressupostos inexistentes para justificar a sua acção - e o acto está desprovido de causa, faltando-lhe um elemento essencial.” (GONÇALVES PEREIRA)


 Bibliografia:
 AMARAL, Diogo Freitas do, et al.Código do Procedimento Administrativo Anotado, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2007.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2011.
BOTELHO, José Manuel Santos, et al.Código do Procedimento Administrativo – Anotado e Comentado, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição, reimpressão, Publicações Dom Quixote, 2010.

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