quinta-feira, 9 de maio de 2013

Da farda única ao moderno pronto-a-vestir

Conforme estudamos no semestre passado, a Administração Pública até ao início do século XX era uma Administração autoritária, baseada numa actuação agressiva, de Estado Polícia, em que o acto administrativo era a forma de actuação por excelência, daí que a concepção administrativa fosse acto-cêntrica. Nesse sentido, Otto Mayer comparava o acto administrativo a uma sentença judicial, pelo que o acto definiria o Direito e impunha-o coactivamente. Já Maurice Hauriou compara o acto administrativo a um negócio jurídico, aceitando a ideia de Administração prestadora de serviços, apesar dos seus "poderes exorbitantes" de definição e de imposição coactiva do Direito.
Com a Grande Depressão de 1929 e com o pós-guerra, os Estados adoptam políticas keynesianas, que levam a que a Administração passe a ter uma actividade cada vez maior e mais importante, pelo que passa a ser uma Administração prestadora, ideia que se consolida com a afirmação do Estado de Direito. Apesar desta mudança de paradigma ter começado no início do século XX, em Portugal só em 1989 é que desaparece a noção de acto definitivo e executório e apenas em 2004 desaparece como critério quanto à impugnabilidade, aquando da revogação o artigo 25º da LEPTA, e com a entrada em vigor do Código do Processo Administrativo.
É assim que o acto deixa de ser "a forma" de actuação, para passar a ser "umas das formas” de actuação da Administração, daí que o Professor Vasco Pereira da Silva use a metáfora “Da farda única para o moderno pronto-a-vestir”.
Deste modo, as relações jurídicas deixam de ser bilaterais, passando a ser multilaterais, envolvendo outras formas de actuação paralelas ao acto administrativo. Basicamente, para o Professor Vasco Pereira da Silva, “que tem a psicanálise em dia” por ter lido autores estrangeiros como Funk, a actuação moderna da Administração passa a englobar e conjugar actos agressivos, actos prestadores e actos infra-estruturais (de eficácia perante terceiros).
 Historicamente, existe uma discussão acerca da noção e alcance do acto administrativo, nomeadamente entre tradições amplas e restritas do acto administrativo, que conduzem a uma discussão doutrinal entre o modelo francês (amplo) e o modelo alemão (restrito), sem prejuízo de um e outro serem seguidos por ordenamentos jurídicos com alguma ligação jurídica. A concepção ampla de acto administrativo define-o como produtor de efeitos jurídicos, subdistinguindo depois entre actos recorríveis e não recorríveis, como sucede em França, Portugal, Espanha e Itália. Esta doutrina francesa considera que, como aponta Laferrière, o legislador quis prevenir, através do emprego de formas tão amplas, qualquer distinção entre os diferentes actos das autoridades administrativas e subtraí-los a todos, indistintamente, à competência judiciária. Por outro lado, uma concepção restrita do acto administrativo, concepção alemã, define-o como acto regulador (produtor de efeitos jurídicos novos relativamente ao particular), sendo também adoptada pelos austríacos. A adopção alemã de uma perspectiva restrita é historicamente marcada pela acentuada tendência acto-cêntrica, subvalorizando o procedimento e considerando apenas o resultado final da actuação administrativa. Assim, o conceito alemão de acto administrativo, enquanto noção restrita por excelência, caracteriza-se pela regulação da posição do particular e pelo seu carácter externo e lesivo, excluindo a doutrina do acto administrativo os actos materiais, os actos preparatórios, os actos meramente confirmativos e os actos de gestão privada/ contratos administrativos. Esta acepção alemã de acto administrativo é delimitada pela recorribilidade jurisdicional, no entendimento de Forsthoff, ou seja, é delimitada em função dos direitos que se fazem valer no contencioso administrativo.
Em Portugal, o artigo 120º do CPA apresenta-nos uma noção legal de acto administrativo, cujo conceito é claramente amplo, definido como produtor de efeitos jurídicos. O artigo 120º CPA refere também a unilateralidade, a concretude do acto e a emanação ao abrigo de normas de Direito Público como requisitos do acto administrativo, apesar do Professor Vasco Pereira da Silva considerar mais correcta outra formulação, propondo: "no exercício da função administrativa".
A Escola de Coimbra, encabeçada pelo Professor Rogério Soares, fortemente influenciado pelo Direito Alemão, e seguida pelos Professores Sérvulo Correia, Vieira de Andrade e Freitas do Amaral, defende uma interpretação restritiva do artigo 120º do CPA, optando por um acto regulador. Defende-se, portanto, uma noção a meio-caminho entre a concepção liberal do Professor Marcelo Caetano, que durou até 1989, e a concepção ampla que se retira de uma interpretação literal do preceito. O Professor Freitas do Amaral avança, inclusive, com dois argumentos literais, nomeadamente pelo facto de o artigo 120º CPA se referir a "decisões", comparando, nesse sentido, o acto à sentença, e por se referir a "normas de Direito Público". Ora, face a estes argumentos, o Professor Vasco Pereira da Silva refuta facilmente esta tese, pois relativamente à "decisão", a noção é de facto redutora, mas não corresponde de todo à realidade, e quanto às "normas de Direito Público", também os privados exercem actos administrativos, no exercício de funções públicas, sendo que esses particulares praticam também actos administrativos, nomeadamente no caso das empresas concessionárias. O Professor Vasco Pereira da Silva considera, e com razão no meu ponto de vista, que a noção de acto administrativo deveria realçar a obrigatoriedade do procedimento, a sua inserção numa relação jurídica administrativa, e o facto de a unilateralidade e concretude servir para distinguir o acto administrativo do regulamento.
            Como referi no terceiro parágrafo, o acto administrativo deixa de ser “a forma” para passar a ser “uma das formas” de actuação administrativa, passando então a existir quatro tipos principais de actuação administrativa, nomeadamente o regulamento, que corresponde a um acto unilateral, geral e abstracto (Ex: Regulamento emanado pela Administração Pública acerca das normas de funcionamento de determinado departamento); o acto administrativo, que consiste num acto unilateral, individual e concreto (Ex: Ordem de demolição de um prédio); o contrato, que é um acto bilateral, individual e concreto (Ex: Concessão administrativa); as operações materiais e técnicas, que constituem actos unilaterais, individuais e concretos, que não produzem efeitos jurídicos, destinando-se normalmente a desenvolver regulamentos ou actos administrativos (Ex: Desobstrução de estrada para limpeza da mesma). Não obstante esta classificação, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que actuações a meio-caminho entre o acto e o regulamento (individuais e abstractas ou gerais e concretas) devem ser tidas por regulamentos, pelo facto de não serem individuais e concretas (Ex: Plano administrativo, que é geral e concreto).


Mariana Baptista de Freitas 
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