Pela revisão do Código de Procedimento Administrativo
ocorrida em 1996, legislador consagrou, de forma expressa, no seu art. 6.º-A, a
vigência do princípio da boa fé no âmbito da actividade administrativa.
Só posteriormente foi o princípio da boa
fé incluído no art. 266.º/2 da Constituição, pela revisão constitucional
operada em 1997, enquanto princípio fundamental ao qual estão subordinados os
órgãos e agentes administrativos no exercício das suas funções. A sua
positivação constitucional mais não foi do que a concretização da tutela da
confiança, em si decorrente do princípio do Estado de Direito, por sua vez
consagrado no art. 2.º da CRP: o princípio do Estado de Direito postula a ideia
de protecção da confiança dos cidadãos face às actuações do Estado, implicando
um mínimo de certeza e de segurança na vida jurídica do Estado[1].
Embora encontre acolhimento no Direito
Público, foi no Direito Privado que o instituto da boa fé mais se desenvolveu.
A sua configuração privatista foi acolhida, cum granu salis, para o âmbito do
Direito Administrativo. Neste artigo ensaio propomo-nos reflectir em que medida
a boa fé, em especial a sua concretização no subprincípio da primazia da
materialidade subjacente, foi recebida no seio do Direito Administrativo
Português.
- Considerações gerais e âmbito de aplicação:
O princípio da boa fé dita que a
conduta administrativa se funde em valores básicos do ordenamento jurídico,
implicando que a Administração adopte condutas consequentes e não
contraditórias em função dos fins que se propõe alcançar. Não só determina que
a Administração Pública aja de boa fé com os particulares, como significa que a
Administração deve dar exemplo aos particulares da observância da bona fides. Sem a boa fé nunca se poderia afirmar, diz FREITAS DO AMARAL, que o
Estado é “pessoa de bem”[2].
São conhecidos os subprincípios que
acompanham a boa fé no Direito, a saber: a tutela da confiança e a primazia da
materialidade subjacente. É curioso notar que a doutrina que desenvolve a boa
fé no campo do Direito Administrativo faz frequentemente apelo à tutela da
confiança, com base no pensamento de que a protecção da confiança corresponde a
um princípio ético-jurídico fortemente radicado na ideia de Direito,
encontrando apoio normativo no art. 6.º-A, n.º 2, alínea a) do CPA, descurando,
pelo contrário, a materialidade subjacente.
A aplicação do subprincípio da tutela da
confiança estará sujeita, no Direito Administrativo, aos mesmos pressupostos
utilizados no Direito Civil: existência de uma situação de confiança, ou seja,
um comportamento gerador de confiança; existência de uma justificação para a
confiança; frustração da confiança por parte de quem a gerou; e existência de
um investimento de confiança. Estes pressupostos constituem um sistema móvel,
podendo a falta de um deles ser suprida pela intensidade especial com que um
outro se verifique, como bem defende MENEZES CORDEIRO.
O princípio da tutela da confiança
encontra variadas concretizações jusadministrativistas, mas é em sede de
formação dos contratos administrativos que vale com especial força,
determinando que a Administração não altere injustificadamente o seu critério,
não negue o prometido, não formule novas exigências, etc. Mutatis mutandis, poder-se-ão chamar à colação os deveres laterais e acessórios que
decorrem do art. 227 do Código Civil.
A jurisprudência tem entendido que o
princípio da boa fé só opera no âmbito da actividade discricionária da
Administração, não cabendo no plano da actividade legalmente vinculada. MARIA
DA GLÓRIA GARCIA, na anotação que faz ao art. 266 da CRP, defende posição
contrária, sem apresentar, contudo, qualquer argumento. Ainda assim, deixa-se
adivinhar o que possa fundamentar a aplicação do princípio
da boa fé no âmbito da actividade legalmente vinculada: por um lado, no
processo hermenêutico que compete à Administração (lembremo-nos que não vinga,
no Direito, um princípio de in claris non fit interpretatio, e por isso há também
interpretação quanto a normas de poder vinculado), parece ser imperativo
constitucional e procedimental que esta proceda à actividade interpretativa de
boa fé, não podendo violar a confiança que se tenha suscitado (veja-se, por
exemplo, a possibilidade de um agente administrativo interpretar um poder
vinculado num sentido, e de um outro agente realizar interpretação dissonante);
por outro lado, a boa fé introduz uma série de deveres, tais como deveres de
actuação consequente, de informação criteriosa, inter alia, que também existem
no plano dos poderes vinculados.
Ainda assim, o instituto da boa fé tem
de ser aplicado cum grano salis, isto é, como último
recurso. A boa fé apresenta-se sempre como a “válvula de escape” do sistema,
apta à correcção de injustiças, que, pela violência que apresentam face à ordem
jurídica, devem ser repudias, em especial pela mão do juiz.
O princípio da boa fé e o acto administrativo:
Um primeiro aspecto em que a boa fé
encontra clara aplicação é na interpretação do acto administrativo. A interpretação do
acto administrativo não se esgota nos elementos literais, sendo igualmente
relevante para a fixação do seu sentido e alcance, entre outros elementos, o
sentido que a Administração atribuir ao acto, na medida em que se presume que
esta agiu de boa fé e, por isso, de forma coerente e não contraditória.
Encontramos assim a boa fé a dar um influxo interpretativo valioso para aquela
que é uma das formas por excelência da actuação administrativa. A tutela da
confiança (contida no art. 6.º-A, n.º 2, alínea a) ) impõe que se proteja a
posição do particular que, face a um acto administrativo e a uma actuação da
Administração, assume que o sentido apropriado a dar ao acto administrativo é
aquele que a Administração dá. Se assim não fosse, estar-se-ia perante um
verdadeiro venire contra factum proprio, visto que a
Administração viria a materialmente adoptar um dos sentidos possíveis do acto,
não podendo depois invocar erros interpretativos contra o particular.
Um outro campo em que a boa fé interfere
na vida e na morte do acto administrativo prende-se com a produção de efeitos jurídicos do acto nulo. Resulta do art.
134.º, n.º 1 do CPA que «o acto nulo não produz qualquer efeito». Todavia, no plano
das invalidades interfere um elemento quase-naturalístico, que se prende com o
facto de os actos nulos serem admitidos a produzir efeitos com base em «situações de facto (…) por força do simples decurso do tempo, de harmonia
com os princípios gerais de direito» (veja-se o n.º 3 do
artigo referido). Ora, daqui decorre que os actos nulos vêem alguns dos seus
efeitos de facto consolidados em efeitos jurídicos pelo decurso do tempo. Não
basta, ainda assim, o mero facto natural que constitui o decurso do tempo, mas
a sua conciliação com os princípios gerais de direito, o que faz operar-se uma
recepção da boa fé neste caso; estará em causa, particularmente, a tutela da
confiança do particular que, com base numa situação de facto, acredita,
justificadamente, que o acto é válido e estará apto à produção de efeitos.
No entanto, pode questionar-se com
propriedade qual o sentido da restrição incluída no art. 134.º, n.º 3, de o
único facto admitido como justificação para a produção de efeitos do acto nulo
ser o decurso do tempo. Entende-se, claro, a sua preponderância: o decurso do
tempo cria uma situação de facto muito concretizada e objectiva, de fácil
avaliação. Mas perguntar-se-á, face a uma outra qualquer situação de facto,
ainda que não cristalizada pelo decurso de um lapso relevante de tempo, se não
será justo admitir alguns efeitos aos actos nulos. A resposta parece-nos dever
ser positiva: em situações de facto tais, que suscitem no destinatário do acto
a confiança, quer na sua validade pura e simples, quer até na sua aptidão à
produção de efeitos determinados, poderá a boa fé exigir a produção dessas
efeitos, nos quais o destinatário do acto confia. Desta forma, situações de facto
em que a Administração executa o acto e em que o particular se conforma com
essa execução, investindo na confiança que depositou na validade do acto, ainda
que decorrentes de um acto nulo, poderão sedimentar-se. Não se afigura
correcto, todavia, procurar na boa fé a convalidação de um acto nulo;
propendemos a aceitar a tese, de resto decalcada do tratamento dado ao
instituto no Direito Civil, de que a boa fé se torna de per si um novo título jurídico, uma realidade
ficta que manda, por imperativos de vária ordem, acatar os efeitos de um acto
nulo.
O art. 6.º-A, n.º 2, alínea b) do CPA enquanto moderador: “os fins
justificam os meios?”
Em toda a dogmática nos deparamos com
uma dificuldade acrescida na definição do que seja a materialidade subjacente
e, mais ainda, qual seja o sentido do art. 6.º-A, n.º 2, alínea b) do CPA.
O subprincípio da materialidade
subjacente costuma repristinar a ideia de que o Direito não se basta com meras
actuações formais, desprovidas de conteúdo, e exige que aos comportamentos
corresponda uma verdade material que traduza uma ponderação finalística de cada
conduta. Não obstante a sua complexidade, o subprincípio da materialidade
subjacente não é de somenos importância, pois é através dele que se proíbe o
exercício inadmissível das posições jurídicas.
Muitas vezes, o subprincípio da
materialidade subjacente é descurado por ser considerado incompatível com o
princípio da legalidade, que alegadamente introduziria um formalismo tal a que
não era possível subsumir-se. E ainda, por se dizer que o seu conteúdo é pouco
útil, pois se encontra absorvido pelo princípio da proporcionalidade[3]. Esta mesma doutrina vem dizer que o
princípio da materialidade subjacente já adquire relevância enquanto parâmetro
das condutas dos particulares.
Tal posição, com a devida vénia, não é
de acolher, pois traduz uma mentalidade autoritária da Administração e perpassa
uma ideia de que os particulares são desconfiáveis, ao passo que a
Administração é de plena confiança. A materialidade subjacente encontra, como
curiosamente vem a afirmar, num verdadeiro venire, MARCELO REBELO DE
SOUSA, consagração legal explícita na alínea b) do artigo dedicado à boa fé,
pelo que seria antijurídica qualquer tentativa de afastar a vinculação da
Administração por via da materialidade subjacente.
De facto, ao apelar ao «objectivo a alcançar com a actuação empreendida», o CPA introduz como
vector de aferição da actuação, tanto dos particulares como da Administração, a
ideia de que os comportamentos correspondam à verdade material, e não à mera
verdade formal, vector que não se encontra, de forma alguma, no princípio da
proporcionalidade, que mais opera uma ponderação da medida, necessidade e
adequação do comportamento, em função do fim, do que se preocupa com a verdade
material, que é uma exigência de Justiça.
Embora afastando a ideia de que “os fins justificam os meios”, cremos que o subprincípio da
materialidade subjacente poderá trazer para a administração pública figuras
como as inalegabilidades formais (será inadmissível que a Administração ou o particular,
provocando o vício de forma de má fé, se possa prevalecer desse vício para
inquinar qualquer actuação administrativa) ou o desequilíbrio no exercício do
direito (quando a proporcionalidade, por qualquer razão, não permita trazer
equilíbrio à relação jurídica administrativa).
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, et al., Código do Procedimento
Administrativo Anotado, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2007.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, 2.ª edição, Coimbra,
Almedina, 2011.
BOTELHO, José Manuel Santos, et al., Código do Procedimento
Administrativo – Anotado e Comentado, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2002.
CORDEIRO, António Menezes, Da Boa Fé no Direito Civil, Volume I, 1ª edição,
Coimbra, Almedina, 1983..
MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007.
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª edição,
reimpressão, Publicações Dom Quixote, 2010.
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