Operações Materiais da Administração Pública: É possível sonhar com algo mais do que actos.
Este é o momento em que a nova geração de pensadores do
Direito Administrativo pedem à Administração Pública menos actos e mais acção.
Pode parecer paradoxal tal exigência; peculiar e até algo “esquizofrénica”
(plagiando sem dolo o vocabulário do Professor Vasco Pereira da Silva).
Todavia, neste caso, a esquizofrenia é algo de muito benéfico e mesmo
necessário! Explico. A história do Direito Administrativo, mormente, da
actividade administrativa, foi sendo feita à custa de uma mão cheia de traumas
que, em Portugal, só no século XX, sobretudo nas últimas décadas, têm vindo a
ser enfrentados sem medo e debelados. De salientar que esse caminho para a cura
não foi feito à custa de medicação química, nem tão pouco recorrendo às
medicinas alternativas chinesas; o maior contributo para a recuperação
paulatina do Direito Administrativo foi protagonizado pelos juristas que
quebraram com a rigidez tradicional e pela complexidade desnecessária e mal
aplicada deste ramo do Direito. Graças a eles, não centramos a Teoria da
Actividade Administrativa na própria teoria do acto administrativo, sendo-nos
possível, hoje, reconhecer a relevância de outras figuras não tão “mayerianas”.
Algumas provenientes da relação jurídica administrativa e interadministrativa e
outras que surgem das novas formas de encarar a actividade da administração
como uma realidade mais tangível e menos rígida. Por isso se quer hoje da
Adminstração menos actos e mais acção!
Falamos hoje das Operações Materiais da Administração
Pública. Para permitir uma compreensão estrutural desta forma de actuação
administrativa dividimos a nossa análise em quatro pontos: Objecto, Base
Habilitante, Âmbito e Fim.
Cabe, desde logo, fazer uma ressalva em relação à matéria em
apreço: A actuação material não é acto administrativo. Isto para nos
desprendermos das amarras que a noção última carrega. Histórica e
dogmaticamente não é concebível deixar tocar as duas realidades. A actuação material
é uma, a par de outras, que concretizam os objectivos da função administrativa.
1. Objecto
Seguindo aquilo que revela CARLA AMADO GOMES, o elemento de
nota no que toca às actuações materiais da Administração é a sua vocação
exclusiva para a produção de efeitos de facto. Estas actuações apenas mudam o
mundo físico, deixando intocado o universo do Direito que nunca é directamente
afectado. Mesmo quando estas actuações surgem como elemento finalizador de um
procedimento não há um efeito positivo ou negativo no ordenamento jurídico,
elas são neutras para o mundo do Direito.
O acto material não tem, nem pode ter, como objecto a
definição de Direito, nem sequer a mera informação ou recomendação. O que pode,
por vezes, acontecer é uma extrapolação do raio de influência destas actuações,
quando elas próprias vão além dos limites impostos pelas normas. Podem surgir
casos de responsabilidade extracontratual da Administração, objectiva ou
subjectiva.
É, pois, esta ausência de conteúdo jurídico que permite
estabelecer o limite entre as actuações materiais e as informações, por
exemplo. Estas informações, prestadas na maior parte das vezes a requerimento
do particular, condicionam o mesmo e criam na esfera da Administração um dever
de informação condicionado pelos ditames da boa-fé.
Tão pouco podemos achar que a actividade informal da
Administração se pode reconduzir a operações materiais, só por se pensar que
não há na primeira um efeito vinculativo. Aqui temos uma nova fase da vida da
Administração Pública em que se cria uma lógica de concertação entre esta e os
particulares na prossecução do interesse público. Assim, esta participação é
uma forma de conferir maior legitimidade as decisões administrativas,
contribuindo para um menor impacto da condição em que o poder central se
encontra; facto subjacente ao modelo eleitoral existente que confere apenas uma
legitimidade indirecta aos órgãos deste poder.
Corroborando esta ideia surge o Professor BAPTISTA MACHADO,
que nos diz que qualquer conduta comunicativa gera uma autovinculação da qual
”derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas também postuladas pelas
exigências elementares de uma ordem de convivência e de interação que o próprio
direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem
de convivência nem o Direito seriam possíveis”.
Opinião que vai ao encontro do que o Professor propugna é a
de CARLA AMADO GOMES. Afirma, pois, que “a ostensiva materialidade” dos sinais
de um policia sinaleiro (actos gestuais), a ordem de expulsão de um aluno, pelo
professor (actos orais), são actos administrativos de efeitos instantâneos que
traduzem proibições ou permissões. Segundo a autora, nem mesmo a ausência de
forma escrita, ou a tendencial desprocedimentalização não afastam o seu
objecto: a regulação de condutas e o condicionamento dos comportamentos dos
destinatários.
Torna-se algo complicado compreender o facto de não se chamar
a estas actuações, operações materiais e atribuir-se-lhes a categoria de acto
administrativo, especialmente com o exemplo dado pelo Professor VASCO PEREIRA
DA SILVA. Este determina que as ordens dadas pelo controlador aéreo não são
actos administrativos, mas antes operações materiais…
Avancemos, com a primeira consideração que fica no nosso
subconsciente: Operações materiais são todas as actuações da Administração com
o propósito de influenciar o mundo físico e apenas este, sem qualquer vocação
para alterar o mundo jurídico.
2. Base Habilitante
Desde logo, as operações materiais podem surgir como forma de
execução de um acto normativo, quer de um acto individual e concreto. Mais
ainda, podedmos acrescentar que esta actuação pode advir de um espírito de
autodeterminação administrativa- por via de acto administrativo ou regulamento,
por exemplo-, ou pode surgir numa lógica de heterodeterminação- por lei,
regulamento comunitário e sentença judicial. Fazendo o cross check entre estes dois critérios é possível a criação de
algumas classificações de operações materiais.
Em primeiro lugar, poderiamos falar em 1.0: todas as
operações físicas de concretização de actos normativos. Sendo que, uma primeira
divisão (1.1) abarcaria a lei, ordinária e constitucional, bem como, os
regulamentos comunitários- heterodeterminação por actos normativo. Aqui poderíamos
incluir as actividades levadas a cabo pela Administração prestadora, na
construção de estradas e hospitais públicos, por exemplo, ou na pavimentação de
ruas e estradas, quer seja a própria a actuar, quer sejam os seus
concessionários. Aqui incluiríamos, ainda, numa categoria 1.1.1 as acções
materiais de uma Administração agressiva, sem que para isso seja dada qualquer
ordem sobre a forma de acto individual e concreto. Assim sendo, a maior parte
decorrerá das fontes acima citadas, mormente a lei. Falamos do caso de
apreensões imediatas de mercadoria contrafeita a feirantes, ou ao encerramento
imediato de estabelecimentos que não cumpram as regras impostas pela lei no
tocante à existência de boas condições sanitárias.
Numa categoria 1.2, colocaríamos aquelas actuações
decorrentes de actos normativos de carácter regulamentar- autodeterminação por
acto normativo. Aqui encontraremos todas as atribuições praticadas pela
Administração dentro das suas obrigações de serviço público, cuja disciplina do
caso concreto é feita por regulamento pela sua particularidade e complexidade.
Categoria específica encontraremos em 1.2.1, com a actividade no seio da
organização interna da Administração Pública.
Num segundo grupo (2.), inserem-se as operações materiais que
correspondem à execução de actos individuais e concretos. Em primeiro lugar
temos 2.1, ou seja, exemplos de autodeterminação administrativa neste domínio:
2.1.1 os actos materiais praticados pela Administração como consequência de
actos administrativos favoráveis. Quando todos os meses faz depósitos bancários
correspondentes a pensões de invalidez, ou quando instala uma rampa para acesso
a espaços públicos por parte de deficientes motores. No reverso da medalha
estão as actuações 2.1.2, ou seja, aquelas que através da força concretizam
actos administrativos que não são favoráveis aos particulares. Exemplo disto mesmo,
são demolições de obras ilegais após se esgotarem todos os meios de cumprimento
voluntário, ou mesmo a concretização de acções de despejo.
Há, por fim, momentos em que a Administração surge heterovinculada
por actos com carácter individual (2.2). Isto sucede quando esta é investida do
dever de cumprir certa sentença judicial.
3.
Âmbito
Reflectindo sobre o âmbito de
incidência das operações materiais da Administração há que referir duas
vertentes, a externa e a interna.
A primeira faceta surge da
concretização da lei ou da execução de actos administrativos, favoráveis ou desfavoráveis
na relação com o ambiente e os particulares. A segunda ocorre dentro da própria
máquina administrativa, na realização das tarefas conducentes à administração
da própria Administração Pública. Os actos de carácter interno são as chamadas Verrichtungen, ou operações que não
podem ser confundidas nem com actos preparatórios, nem com verificações
decorrentes de qualquer tutela inspectiva no quadro da relação hierárquica.
Assim, vemos que quanto ao âmbito,
a actividade material da Administração se desenvolve nessa duplicidade de
planos, o externo e o interno, na concretização do direito, em todas as suas
vertentes.
4.
Fim
Qual a finalidade das actuações
materiais da Administração? Ou como conduta “ajurídica” não são orientadas por
um propósito final? Têm-no com certeza. O seu fim é o mesmo que o de qualquer
actuação administrativa, a prossecução do interesse público. Este é definido
pelo legislador de forma livre mas cabe à Administração Pública assegurar a sua
concretização.
É uma afirmação incontestável a
obrigação constitucional de prossecução do interesse público por parte da
Administração Pública e a sua subordinação ao princípio da legalidade. Isto sob
qualquer forma de exteriorização da sua vontade ou de execução dos seus pergaminhos.
Podemos concretizar como ROGÉRIO
SOARES, determinando pela existência de um interesse público secundário, o que
sugere uma via secundária para o atingir, a via das operações matérias. E não
só tem este peso a actividade externa mas também aquela que se desenrola no
seio da Administração, numa lógica de gestão interna. Esta é submetida aos
mesmos imperativos que a actuação de cariz externo.
Isto é o que sucede do ponto de
vista macro, no entanto, é difícil,
no caso concreto, determinar qual o interesse público prosseguido, ou se este é
de todo o fim.
Com efeito, o domínio da actividade
material administrativa é especialmente permeável e sujeita a interpretações
pela ausência de formas características de actuação. Isto é especialmente
preocupante no campo da responsabilidade do Estado, como refere VASCO PEREIRA
DA SILVA. Que dizer do caso em que o motorista do Primeiro-Ministro decide no
seu horário de trabalho ir de carro fazer compras para o lar ao supermercado,
atropelando no caminho duas crianças que atravessavam a passadeira? Quid Juris? Será que o motorista com
aquela actuação material representava, naquela altura, a mão da Administração?
Tendo em conta o fim da sua actuação, a resposta tem de ser negativa! Ele não
estava a prosseguir o interesse público mas sim o seu próprio interesse, recorrendo
para isso ao chapéu da Administração que, só aparentemente, estaria a usar.
Aqui se compreende a importância da determinação do fim da actuação
administrativa!
Terminamos, resumindo esta matéria
com uma citação de CARLA AMADO GOMES: “Operações materiais administrativas, em
termos substantivos, são todos os actos que visam exclusivamente produzir
alterações na realidade física (embora possam também ter, acidentalmente, consequências
jurídicas), quer no âmbito da organização administrativa, quer no âmbito do
estabelecimento de relações jurídicas administrativas entre a Administração e
outros sujeitos de Direito Público ou Privado, cuja prática é imposta por acto
normativo ou por determinação individual, e que têm por finalidade a realização
dos interesses públicos da pessoa colectiva ao qual são imputados”.
Ricardo Lira Gonçalves
nº 21964
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