domingo, 19 de maio de 2013


Operações Materiais da Administração Pública: É possível sonhar com algo mais do que actos.


Este é o momento em que a nova geração de pensadores do Direito Administrativo pedem à Administração Pública menos actos e mais acção. Pode parecer paradoxal tal exigência; peculiar e até algo “esquizofrénica” (plagiando sem dolo o vocabulário do Professor Vasco Pereira da Silva). Todavia, neste caso, a esquizofrenia é algo de muito benéfico e mesmo necessário! Explico. A história do Direito Administrativo, mormente, da actividade administrativa, foi sendo feita à custa de uma mão cheia de traumas que, em Portugal, só no século XX, sobretudo nas últimas décadas, têm vindo a ser enfrentados sem medo e debelados. De salientar que esse caminho para a cura não foi feito à custa de medicação química, nem tão pouco recorrendo às medicinas alternativas chinesas; o maior contributo para a recuperação paulatina do Direito Administrativo foi protagonizado pelos juristas que quebraram com a rigidez tradicional e pela complexidade desnecessária e mal aplicada deste ramo do Direito. Graças a eles, não centramos a Teoria da Actividade Administrativa na própria teoria do acto administrativo, sendo-nos possível, hoje, reconhecer a relevância de outras figuras não tão “mayerianas”. Algumas provenientes da relação jurídica administrativa e interadministrativa e outras que surgem das novas formas de encarar a actividade da administração como uma realidade mais tangível e menos rígida. Por isso se quer hoje da Adminstração menos actos e mais acção!
Falamos hoje das Operações Materiais da Administração Pública. Para permitir uma compreensão estrutural desta forma de actuação administrativa dividimos a nossa análise em quatro pontos: Objecto, Base Habilitante, Âmbito e Fim.
Cabe, desde logo, fazer uma ressalva em relação à matéria em apreço: A actuação material não é acto administrativo. Isto para nos desprendermos das amarras que a noção última carrega. Histórica e dogmaticamente não é concebível deixar tocar as duas realidades. A actuação material é uma, a par de outras, que concretizam os objectivos da função administrativa.

1.      Objecto          
Seguindo aquilo que revela CARLA AMADO GOMES, o elemento de nota no que toca às actuações materiais da Administração é a sua vocação exclusiva para a produção de efeitos de facto. Estas actuações apenas mudam o mundo físico, deixando intocado o universo do Direito que nunca é directamente afectado. Mesmo quando estas actuações surgem como elemento finalizador de um procedimento não há um efeito positivo ou negativo no ordenamento jurídico, elas são neutras para o mundo do Direito.
O acto material não tem, nem pode ter, como objecto a definição de Direito, nem sequer a mera informação ou recomendação. O que pode, por vezes, acontecer é uma extrapolação do raio de influência destas actuações, quando elas próprias vão além dos limites impostos pelas normas. Podem surgir casos de responsabilidade extracontratual da Administração, objectiva ou subjectiva.
É, pois, esta ausência de conteúdo jurídico que permite estabelecer o limite entre as actuações materiais e as informações, por exemplo. Estas informações, prestadas na maior parte das vezes a requerimento do particular, condicionam o mesmo e criam na esfera da Administração um dever de informação condicionado pelos ditames da boa-fé.
Tão pouco podemos achar que a actividade informal da Administração se pode reconduzir a operações materiais, só por se pensar que não há na primeira um efeito vinculativo. Aqui temos uma nova fase da vida da Administração Pública em que se cria uma lógica de concertação entre esta e os particulares na prossecução do interesse público. Assim, esta participação é uma forma de conferir maior legitimidade as decisões administrativas, contribuindo para um menor impacto da condição em que o poder central se encontra; facto subjacente ao modelo eleitoral existente que confere apenas uma legitimidade indirecta aos órgãos deste poder.
Corroborando esta ideia surge o Professor BAPTISTA MACHADO, que nos diz que qualquer conduta comunicativa gera uma autovinculação da qual ”derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interação que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o Direito seriam possíveis”.
Opinião que vai ao encontro do que o Professor propugna é a de CARLA AMADO GOMES. Afirma, pois, que “a ostensiva materialidade” dos sinais de um policia sinaleiro (actos gestuais), a ordem de expulsão de um aluno, pelo professor (actos orais), são actos administrativos de efeitos instantâneos que traduzem proibições ou permissões. Segundo a autora, nem mesmo a ausência de forma escrita, ou a tendencial desprocedimentalização não afastam o seu objecto: a regulação de condutas e o condicionamento dos comportamentos dos destinatários.
Torna-se algo complicado compreender o facto de não se chamar a estas actuações, operações materiais e atribuir-se-lhes a categoria de acto administrativo, especialmente com o exemplo dado pelo Professor VASCO PEREIRA DA SILVA. Este determina que as ordens dadas pelo controlador aéreo não são actos administrativos, mas antes operações materiais…
Avancemos, com a primeira consideração que fica no nosso subconsciente: Operações materiais são todas as actuações da Administração com o propósito de influenciar o mundo físico e apenas este, sem qualquer vocação para alterar o mundo jurídico.

2.      Base Habilitante
Desde logo, as operações materiais podem surgir como forma de execução de um acto normativo, quer de um acto individual e concreto. Mais ainda, podedmos acrescentar que esta actuação pode advir de um espírito de autodeterminação administrativa- por via de acto administrativo ou regulamento, por exemplo-, ou pode surgir numa lógica de heterodeterminação- por lei, regulamento comunitário e sentença judicial. Fazendo o cross check entre estes dois critérios é possível a criação de algumas classificações de operações materiais.
Em primeiro lugar, poderiamos falar em 1.0: todas as operações físicas de concretização de actos normativos. Sendo que, uma primeira divisão (1.1) abarcaria a lei, ordinária e constitucional, bem como, os regulamentos comunitários- heterodeterminação por actos normativo. Aqui poderíamos incluir as actividades levadas a cabo pela Administração prestadora, na construção de estradas e hospitais públicos, por exemplo, ou na pavimentação de ruas e estradas, quer seja a própria a actuar, quer sejam os seus concessionários. Aqui incluiríamos, ainda, numa categoria 1.1.1 as acções materiais de uma Administração agressiva, sem que para isso seja dada qualquer ordem sobre a forma de acto individual e concreto. Assim sendo, a maior parte decorrerá das fontes acima citadas, mormente a lei. Falamos do caso de apreensões imediatas de mercadoria contrafeita a feirantes, ou ao encerramento imediato de estabelecimentos que não cumpram as regras impostas pela lei no tocante à existência de boas condições sanitárias.
Numa categoria 1.2, colocaríamos aquelas actuações decorrentes de actos normativos de carácter regulamentar- autodeterminação por acto normativo. Aqui encontraremos todas as atribuições praticadas pela Administração dentro das suas obrigações de serviço público, cuja disciplina do caso concreto é feita por regulamento pela sua particularidade e complexidade. Categoria específica encontraremos em 1.2.1, com a actividade no seio da organização interna da Administração Pública.
Num segundo grupo (2.), inserem-se as operações materiais que correspondem à execução de actos individuais e concretos. Em primeiro lugar temos 2.1, ou seja, exemplos de autodeterminação administrativa neste domínio: 2.1.1 os actos materiais praticados pela Administração como consequência de actos administrativos favoráveis. Quando todos os meses faz depósitos bancários correspondentes a pensões de invalidez, ou quando instala uma rampa para acesso a espaços públicos por parte de deficientes motores. No reverso da medalha estão as actuações 2.1.2, ou seja, aquelas que através da força concretizam actos administrativos que não são favoráveis aos particulares. Exemplo disto mesmo, são demolições de obras ilegais após se esgotarem todos os meios de cumprimento voluntário, ou mesmo a concretização de acções de despejo.
Há, por fim, momentos em que a Administração surge heterovinculada por actos com carácter individual (2.2). Isto sucede quando esta é investida do dever de cumprir certa sentença judicial.

3.       Âmbito
Reflectindo sobre o âmbito de incidência das operações materiais da Administração há que referir duas vertentes, a externa e a interna.
A primeira faceta surge da concretização da lei ou da execução de actos administrativos, favoráveis ou desfavoráveis na relação com o ambiente e os particulares. A segunda ocorre dentro da própria máquina administrativa, na realização das tarefas conducentes à administração da própria Administração Pública. Os actos de carácter interno são as chamadas Verrichtungen, ou operações que não podem ser confundidas nem com actos preparatórios, nem com verificações decorrentes de qualquer tutela inspectiva no quadro da relação hierárquica.
Assim, vemos que quanto ao âmbito, a actividade material da Administração se desenvolve nessa duplicidade de planos, o externo e o interno, na concretização do direito, em todas as suas vertentes.

4.       Fim
Qual a finalidade das actuações materiais da Administração? Ou como conduta “ajurídica” não são orientadas por um propósito final? Têm-no com certeza. O seu fim é o mesmo que o de qualquer actuação administrativa, a prossecução do interesse público. Este é definido pelo legislador de forma livre mas cabe à Administração Pública assegurar a sua concretização.
É uma afirmação incontestável a obrigação constitucional de prossecução do interesse público por parte da Administração Pública e a sua subordinação ao princípio da legalidade. Isto sob qualquer forma de exteriorização da sua vontade ou de execução dos seus pergaminhos.
Podemos concretizar como ROGÉRIO SOARES, determinando pela existência de um interesse público secundário, o que sugere uma via secundária para o atingir, a via das operações matérias. E não só tem este peso a actividade externa mas também aquela que se desenrola no seio da Administração, numa lógica de gestão interna. Esta é submetida aos mesmos imperativos que a actuação de cariz externo.
Isto é o que sucede do ponto de vista macro, no entanto, é difícil, no caso concreto, determinar qual o interesse público prosseguido, ou se este é de todo o fim.
Com efeito, o domínio da actividade material administrativa é especialmente permeável e sujeita a interpretações pela ausência de formas características de actuação. Isto é especialmente preocupante no campo da responsabilidade do Estado, como refere VASCO PEREIRA DA SILVA. Que dizer do caso em que o motorista do Primeiro-Ministro decide no seu horário de trabalho ir de carro fazer compras para o lar ao supermercado, atropelando no caminho duas crianças que atravessavam a passadeira? Quid Juris? Será que o motorista com aquela actuação material representava, naquela altura, a mão da Administração? Tendo em conta o fim da sua actuação, a resposta tem de ser negativa! Ele não estava a prosseguir o interesse público mas sim o seu próprio interesse, recorrendo para isso ao chapéu da Administração que, só aparentemente, estaria a usar. Aqui se compreende a importância da determinação do fim da actuação administrativa!
Terminamos, resumindo esta matéria com uma citação de CARLA AMADO GOMES: “Operações materiais administrativas, em termos substantivos, são todos os actos que visam exclusivamente produzir alterações na realidade física (embora possam também ter, acidentalmente, consequências jurídicas), quer no âmbito da organização administrativa, quer no âmbito do estabelecimento de relações jurídicas administrativas entre a Administração e outros sujeitos de Direito Público ou Privado, cuja prática é imposta por acto normativo ou por determinação individual, e que têm por finalidade a realização dos interesses públicos da pessoa colectiva ao qual são imputados”.

Ricardo Lira Gonçalves
nº 21964

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