Responsabilidade Civil na
Administração Pública: gestão privada ou gestão pública?
A
responsabilidade civil administrativa traduz-se na obrigação de indemnização
dos prejuízos causados a outrem no exercício da actividade administrativa.
Contudo, esta responsabilidade
nem sempre existiu. No Estado Absoluto, o Estado era irresponsável pelos
prejuízos que causasse aos particulares, pois tais prejuízos só eram reparados
através da concessão de uma graça do monarca. Já no Estado de Polícia,
aceitava-se a responsabilidade do Estado nas relações de carácter patrimonial
que se mantivesse com o Estado.
Foi só com o
Estado Social de Direito que se conquistou a responsabilidade civil do Estado e
demais pessoas colectivas administrativas por actos de autoridade, sendo os
factores que originaram a responsabilidade do Estado os seguintes:
aprofundamento da legalidade, reflexo das concepções organicistas no
enquadramento jurídico da relação entre Estado e funcionário, alargamento da
intervenção do Estado.
Em Portugal, também
o Estado era irresponsável, mas a Constituição de 1822 veio a consagrar a
responsabilidade dos funcionários públicos pelos danos ilícitos cometidos no
exercício das suas funções, o que também constou no Código de Seabra. Além
disso, nesse código de 1867, verificava-se que, na ausência de previsão legal
específica, a doutrina e a jurisprudência aceitavam a responsabilidade civil do
Estado pelos prejuízos provocados por actividades de gestão privada, reguladas
pelo direito privado. Guilherme Moreira defendia a responsabilidade civil comum
do Estado (actos ilícitos dos funcionários do Estado como se fosse o próprio
Estado a perpretar).
Foi com o
Código Administrativo de 1936/1940 (que consagrou ainda a responsabilidade das
autarquias locais pelas perdas e danos resultantes das deliberações dos
respectivos corpos administrativos, com ofensa da lei, mas dentro das suas
atribuições), e a Constituição de 1933, no Estado Novo, que surgiu a distinção
entre actos de gestão privada e actos de gestão pública (actos de gestão
privada para os tribunais comuns e actos de gestão pública para os tribunais
administrativos). Foi ainda elaborado o DL nº 48051 de 21/11/67 para a
responsabilidade administrativa extracontratual por actos de gestão pública,
sendo que o artigo 501º do Código Civil de 1966 ficava para os actos de gestão
privada, ficando assim consagrado, pela primeira vez, a responsabilidade civil
administrativa extracontratual por actos de gestão privada. O Prof. Menezes
Cordeiro refere que o DL nº 48051 de 21/11/67 trata substancialmente de Direito
Privado comum, logo devia ter sido incluído no Código Civil.
Em 2002 houve
uma reforma da Justiça, tendo entrado em vigor o Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos,
que fez com que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para toda
e qualquer acção de responsabilidade a propor contra o Estado e outras
entidades públicas, sendo gestão pública ou privada, ao contrário do anterior
ETAF. Pouco depois, surgiu também a Lei 67/2007 de 31/12, que consagrou o
regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades
públicas. Quanto a esta lei, mais uma vez, o Prof. Menezes Cordeiro mostra-se
contra, pois argumenta que ela tentou desenvolver questões jurídico-científicas
(como ilicitude e culpa), que não podem ser formuladas por lei, e ainda por
cima, incorrectamente, pois a lei mostra muito pouco rigor científico. O Prof.
Menezes Cordeiro enuncia os exemplos do 10º nº1, em que a lei abandona a
fórmula do bónus pater família para a
culpa, que se induz e não se presume (10º nº2 e 3), ou mesmo o 16º
(responsabilidade pelo sacrifício ou acto lícito), que dispõe “direito ou
interesse violado” e, se a actuação é lícita, pode haver danos, mas não
direitos violados. O Professor sustenta então que a referida lei é
materialmente civil e ainda inconstitucional por quebra do princípio da
igualdade (situações materialmente idênticas são tratadas diferentemente pelo
Estado, consoante esteja em causa o Código Civil ou a Lei 67/2007).
Então e como
distinguir a gestão privada e a gestão pública? A distinção entre actos de uma
e de outra faz-se só na responsabilidade delitual, em função do modo como as
atribuições são exercidas (corpos administrativos têm que agir no quadro das
suas funções). Há quem defenda a distinção entre facto danoso que seja acto
jurídico ou facto danoso que seja acto material. No primeiro caso, sendo
juridicamente regulados estes actos, há que ver se são normas de direito
privado ou de direito público. No segundo caso, por sua vez, o Prof. Marcello
Caetano inclui estes actos não juridicamente regulados pela Administração, na
função técnica do Estado. O Prof. Diogo Freitas do Amaral refere quanto a este
ponto, que tal será resolvido através da qualificação de tais actos como de
gestão pública se o seu exercício for de alguma forma influenciado pela
prossecução do interesse público e se o agente estiver a exercer poderes de
autoridade ou se encontra a cumprir deveres administrativos. Nos restantes
casos serão actos de gestão privada.
É ainda
relevante enunciar as linhas gerais do regime jurídico da responsabilidade
civil da Administração Pública actualmente:
1-
Pelos factos ilícitos e culposos, praticados por
um órgão, agente ou representante da Administração, fora do exercício das suas
funções (responsabilidade exclusiva do órgão ou agente);
2-
Pelos factos ilícitos e culposos, praticados por
órgão, agente ou representante da Administração, dentro do exercício das suas
funções (responsabilidade solidária da Administração e dos indivíduos que
actuam em nome dela). Neste caso:
a.
Se o órgão, agente ou representante da
Administração actuou com dolo, a Administração goza do direito de regresso
contra ele;
b.
Se actuou com mera culpa, há responsabilidade exclusiva
da Administração;
3-
Na responsabilidade objectiva, a Administração
tem responsabilidade exclusiva.
Verifica-se,
por conseguinte, que, na Lei 67/2007, cada um dos pressupostos da
responsabilidade civil extracontratual (facto, ilicitude, culpa, prejuízo, nexo
de causalidade) do Estado é entendida no Direito Administrativo da mesma
maneira que no Direito Civil. Por essa razão, há quem defenda que é
desnecessária, pois trata de matéria civil que podia ser incluída no Código
Civil, para além de que se fala ainda no seu pouco rigor jurídico-científico e
há que referir o facto de, na própria lei constarem várias remissões para o
regime comum do Código Civil. Aqui estão alguns exemplos: 10º nº1 reproduz o
mesmo que o 487º nº2 CC, mas com linguagem distinta; 9º nº1 é idêntico ao 483º
nº1; no 10º nº3 não faz sentido a remissão para o regime comum; ter que se
aplicar o regime comum do 563º, pois a lei não tem regra para o nexo de
causalidade; 7º nº3 deve ser enquadrado no regime comum; no 4º há uma
transcrição parcial do 570º nº1, entre outros exemplos. ´
Por fim,
quanto à gestão privada, aplica-se o regime do Código Civil relativamente aos
actos de gestão privada (responsabilidade objectiva do comitente: 501º, que
remete para o 500º) e quanto à responsabilidade contratual e pré-contratual
para contratos públicos de empresas não sujeitas ao Código dos Contratos
Públicos e para os contratos celebrados por entidades públicas a que não seja
aplicável o Código dos Contratos Públicos.
Bibliografia:
António Menezes Cordeiro “Tratado de Direito Civil Português”
Volume II – Direito das Obrigações, Tomo III;
Diogo Freitas do Amaral “Curso de Direito Administrativo”
Volume II;
João Caupers “Introdução ao Direito Administrativo”;
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos “Direito
Administrativo Geral – Actividade Administrativa” Tomo III;
Pedro Martinez “Autarquias Locais e Direito Privado”.
Diana Furtado Guerra
Nº 21984
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