sexta-feira, 17 de maio de 2013

A consequência da preterição da audiência dos interessados no procedimento administrativa


A audiência dos interessados constitui uma das fases mais importantes do atual procedimento administrativo português e encontra-se situada sempre depois da instrução e antes da decisão da administração. Anteriormente à vigência da atual constituição, esta fase, era admitida apenas em procedimentos disciplinares (direito de defesa) e restantes atuações da administração de carater sancionatório, ou seja, nos procedimentos não sancionatórios ou disciplinares, o particular não intervinha mesmo quando a eventual decisão tomada pela administração fosse do seu interesse. Hoje, com a consagração genérica do artigo 267º nº 5 da nossa lei fundamental, aplica-se a todo e qualquer tipo de processo os princípios da colaboração da administração com os particulares e o da participação concretizados nos artigos 100º e seg. do CPA enquanto normas que executam na sua máxima expressão o comando constitucional acima referido. A audiência dos interessados pode tomar a forma escrita (101ª CPA) ou oral (102ª CPA) e por norma suspende a contagem de prazos em todos os procedimentos administrativos, o artigo 103º CPA enumera os casos onde não há lugar à audiência dos interessados, ou seja, prevê, num regime de tipicidade, as únicas hipóteses onde a preterição desta fase não gera um vicio do ato administrativo. Fora desses casos, na falta de audiência prévia, encontramo-nos perante uma situação de ilegalidade através de um vício de forma por preterição de uma formalidade essencial. Resta saber qual o regime de invalidade que deve ser aplicado ao ato que carece da audiência se o da anulabilidade se o da nulidade. Se considerarmos que o regime geral é o da anulabilidade, então só poderemos considerar a nulidade de um ato viciado por tal forma se o reportar-mos á tipificação do artigo 133º CPA. Por esta ordem de ideias, alguns autores enquadram a falta de audiência prévia na hipótese prevista na alínea d) do nº2 do referido artigo, ou seja, ofensa do conteúdo de um direito fundamental. Consideram então estes autores que o direito de participação no procedimento administrativo constitui um verdadeiro direito fundamental no ordenamento jurídico português.

Para se compreender a eventual fundamentalidade do direito em questão á que dividir em primeiro lugar os tipos de procedimentos: nos procedimentos de natureza sancionatória ou disciplinar, a aparente afinidade existente entre estes tipos e os procedimentos de natureza penal parece sugerir que a participação do visado nestas situações constitua efetivamente um direito fundamental, e isto por via do disposto no artigo 32º da CRP que serve analogicamente para as situações que em que a Administração sancione ou discipline um particular. Por esta ordem de ideias excluímos da questão ora em análise os procedimentos sancionatórios e disciplinares bem como os procedimentos administrativos análogos aos procedimentos penais. Para os autores que defendem que a participação do particular no procedimento se trata de um direito fundamental, o artigo 267º nº5 CRP deve ser entendido como uma posição subjetiva atribuída ao particular digna de proteção legal e reconduzível ao princípio da dignidade humana que norteia todo o ordenamento jurídico de um Estado de direito com consagração constitucional em Portugal (art. 1º CRP). A ideia é que recorrendo (mais uma vez) à analogia entre o procedimento administrativo, seja de tipo sancionatório ou não, e o processo penal se possa reconduzir a fase da audiência dos interessados ao catálogo de direitos, liberdades e garantias do nosso ordenamento (17º CRP). Da dignidade humana surge também o corolário da democracia representativa onde é imprescindível a participação do particular em determinadas tomadas de decisão. Trata se de uma visão pluralista da democracia onde a audiência dos interessados ganha particular relevo. “ A sociedade que respeita a dignidade humana deve consentir no pluralismo e no livre diálogo entre os cidadãos e o poder” tal como propõe Sérvulo Correia e para que tal seja possível devem ser criados mecanismos de diálogo entre governados e governantes. Para o referido autor, a participação do particular no procedimento administrativo oferece uma dupla vertente: se por um lado temos uma vertente funcional onde a participação surge como contributo a uma melhor tomada de decisão e prossecução do interesse publico, por outro temos uma vertente de garantia que atua simultaneamente com a funcional e que oferece ao particular uma defesa face à atuação da administração e um limite natural á liberdade de conformação do administrador. Como sempre, de um lado a defesa do particular do outro a prossecução do interesse público. A dignidade da pessoa humana surge aqui na forma de garantia do particular face á administração numa visão estreitamente ligada com a ideia de soberania que reside no povo e esta ideia traduz-se na participação dos cidadãos tanto nos processos de eleição para os órgãos de soberania (direito de eleger e ser eleito) como na participação nos processos de tomada de decisão, leia-se procedimento administrativo, por ser este por excelência que pode afetar mais diretamente o particular na decorrência democrática (veja-se o exemplo de uma expropriação). Na primeira hipótese, a participação na vida pública parece constituir sem dúvidas um direito fundamental como se apreende pela leitura da Constituição (art 48ª CRP). Mas o mesmo não se passa com a participação administrativa que divide a doutrina quanto á sua inserção no catálogo de direitos fundamentais do ordenamento jurídico português. Certos autores defendem que o regime de ilegalidade mais adequado para um ato administrativo que carece de audiência prévia, sem justificação no artigo 103º CPA, é o geral, ou seja o da anulabilidade por não considerarem o direito de participação um direito fundamental.

A natureza jurídica fundamental da participação dos interessados é posta em causa desde logo pela própria constituição. No artigo 268º CRP, respeitante aos direitos e garantias dos particulares, nenhuma referência é feita á participação procedimental do particular, a inserção desse direito é feita no artigo 267º CRP sobre a estrutura da administração demonstrando que foi propositadamente que o legislador constituinte não colocou o direito em causa no artigo 268º CRP. Desta forma, parecem coincidir a letra e o espirito do legislador constituinte. Seguindo esta orientação, a inserção da participação procedimental no artigo 267º CRP parece sugerir que se trata de um dever da administração de chamar o particular ao procedimento, todavia, as teses que defendem de que a participação constitui um direito fundamental perdem ainda mais força se considerarmos que esse direito só existe depois da fase de instrução e estará sujeito as formas que a administração indicar ao particular, claro que dentro do princípio da legalidade. No fundo, a administração, não obstante ter a obrigação, em certos casos, de chamar o particular ao procedimento, pode dentro dos limites do CPA, estipular a forma como decorrerá a audiência, dai que não seja correto afirmar que se possa tratar de um verdadeiro direito fundamental uma vez que para que a audiência prévia seja uma realidade é necessário preencher dois pressupostos: que tenha havido e sido concluída uma fase de instrução e que a realidade daquele caso concreto não seja reconduzível às hipóteses do artigo 133º. Parece estranho que haja pressupostos para se verificar a aplicabilidade de qualquer direito fundamental.

A participação do particular no procedimento constitui em primeiro lugar um direito subjetivo que simultaneamente aparece com a mesma força do dever da administração de chamar o particular. Trata-se antes de tudo isto de um princípio estruturante tomando a forma de direito subjetivo, mas que não reúne as condições do que se encontra referido no art 17º CRP. Por esta ordem de ideias, a preterição da fase da audiência dos interessados no procedimento administrativo deve constitui sem dúvida alguma uma ilegalidade que encontrará resposta no regime geral da anulabilidade e não no da nulidade uma vez que não estamos perante um direito de natureza fundamental e assim tem decidido o Supremo Tribunal Administrativo.

Bibliografia:
Curso de Direito Administrativo, volume II, 2º edição 2010, Almedina, Diogo Freitas do Amaral

Direito Administrativo Geral, tomo III, 2ºedição 2009, D. Quixote, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos

A audiência dos interessados no procedimento administrativo, 1995 2ª edição, Universidade Católica de Lisboa, Pedro Machete

Direito Contencioso Administrativo I, 2005, Lex, Sérvulo Correia

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