A audiência dos interessados
constitui uma das fases mais importantes do atual procedimento administrativo
português e encontra-se situada sempre depois da instrução e antes da decisão
da administração. Anteriormente à vigência da atual constituição, esta fase,
era admitida apenas em procedimentos disciplinares (direito de defesa) e
restantes atuações da administração de carater sancionatório, ou seja, nos procedimentos
não sancionatórios ou disciplinares, o particular não intervinha mesmo quando a
eventual decisão tomada pela administração fosse do seu interesse. Hoje, com a
consagração genérica do artigo 267º nº 5 da nossa lei fundamental, aplica-se a
todo e qualquer tipo de processo os princípios da colaboração da administração
com os particulares e o da participação concretizados nos artigos 100º e seg.
do CPA enquanto normas que executam na sua máxima expressão o comando
constitucional acima referido. A audiência dos interessados pode tomar a forma
escrita (101ª CPA) ou oral (102ª CPA) e por norma suspende a contagem de prazos
em todos os procedimentos administrativos, o artigo 103º CPA enumera os casos
onde não há lugar à audiência dos interessados, ou seja, prevê, num regime de
tipicidade, as únicas hipóteses onde a preterição desta fase não gera um vicio
do ato administrativo. Fora desses casos, na falta de audiência prévia,
encontramo-nos perante uma situação de ilegalidade através de um vício de forma
por preterição de uma formalidade essencial. Resta saber qual o regime de
invalidade que deve ser aplicado ao ato que carece da audiência se o da
anulabilidade se o da nulidade. Se considerarmos que o regime geral é o da
anulabilidade, então só poderemos considerar a nulidade de um ato viciado por
tal forma se o reportar-mos á tipificação do artigo 133º CPA. Por esta ordem de
ideias, alguns autores enquadram a falta de audiência prévia na hipótese
prevista na alínea d) do nº2 do referido artigo, ou seja, ofensa do conteúdo de
um direito fundamental. Consideram então estes autores que o direito de
participação no procedimento administrativo constitui um verdadeiro direito
fundamental no ordenamento jurídico português.
Para se compreender a eventual
fundamentalidade do direito em questão á que dividir em primeiro lugar os tipos
de procedimentos: nos procedimentos de natureza sancionatória ou disciplinar, a
aparente afinidade existente entre estes tipos e os procedimentos de natureza
penal parece sugerir que a participação do visado nestas situações constitua efetivamente
um direito fundamental, e isto por via do disposto no artigo 32º da CRP que
serve analogicamente para as situações que em que a Administração sancione ou
discipline um particular. Por esta ordem de ideias excluímos da questão ora em
análise os procedimentos sancionatórios e disciplinares bem como os
procedimentos administrativos análogos aos procedimentos penais. Para os
autores que defendem que a participação do particular no procedimento se trata
de um direito fundamental, o artigo 267º nº5 CRP deve ser entendido como uma
posição subjetiva atribuída ao particular digna de proteção legal e
reconduzível ao princípio da dignidade humana que norteia todo o ordenamento
jurídico de um Estado de direito com consagração constitucional em Portugal
(art. 1º CRP). A ideia é que recorrendo (mais uma vez) à analogia entre o
procedimento administrativo, seja de tipo sancionatório ou não, e o processo
penal se possa reconduzir a fase da audiência dos interessados ao catálogo de
direitos, liberdades e garantias do nosso ordenamento (17º CRP). Da dignidade
humana surge também o corolário da democracia representativa onde é
imprescindível a participação do particular em determinadas tomadas de decisão.
Trata se de uma visão pluralista da democracia onde a audiência dos
interessados ganha particular relevo. “ A sociedade que respeita a dignidade
humana deve consentir no pluralismo e no livre diálogo entre os cidadãos e o
poder” tal como propõe Sérvulo Correia e para que tal seja possível devem ser
criados mecanismos de diálogo entre governados e governantes. Para o referido
autor, a participação do particular no procedimento administrativo oferece uma
dupla vertente: se por um lado temos uma vertente funcional onde a participação
surge como contributo a uma melhor tomada de decisão e prossecução do interesse
publico, por outro temos uma vertente de garantia que atua simultaneamente com
a funcional e que oferece ao particular uma defesa face à atuação da
administração e um limite natural á liberdade de conformação do administrador.
Como sempre, de um lado a defesa do particular do outro a prossecução do
interesse público. A dignidade da pessoa humana surge aqui na forma de garantia
do particular face á administração numa visão estreitamente ligada com a ideia
de soberania que reside no povo e esta ideia traduz-se na participação dos
cidadãos tanto nos processos de eleição para os órgãos de soberania (direito de
eleger e ser eleito) como na participação nos processos de tomada de decisão,
leia-se procedimento administrativo, por ser este por excelência que pode
afetar mais diretamente o particular na decorrência democrática (veja-se o
exemplo de uma expropriação). Na primeira hipótese, a participação na vida
pública parece constituir sem dúvidas um direito fundamental como se apreende
pela leitura da Constituição (art 48ª CRP). Mas o mesmo não se passa com a
participação administrativa que divide a doutrina quanto á sua inserção no
catálogo de direitos fundamentais do ordenamento jurídico português. Certos
autores defendem que o regime de ilegalidade mais adequado para um ato
administrativo que carece de audiência prévia, sem justificação no artigo 103º
CPA, é o geral, ou seja o da anulabilidade por não considerarem o direito de
participação um direito fundamental.
A natureza jurídica fundamental
da participação dos interessados é posta em causa desde logo pela própria
constituição. No artigo 268º CRP, respeitante aos direitos e garantias dos
particulares, nenhuma referência é feita á participação procedimental do
particular, a inserção desse direito é feita no artigo 267º CRP sobre a
estrutura da administração demonstrando que foi propositadamente que o
legislador constituinte não colocou o direito em causa no artigo 268º CRP. Desta
forma, parecem coincidir a letra e o espirito do legislador constituinte.
Seguindo esta orientação, a inserção da participação procedimental no artigo
267º CRP parece sugerir que se trata de um dever da administração de chamar o
particular ao procedimento, todavia, as teses que defendem de que a
participação constitui um direito fundamental perdem ainda mais força se
considerarmos que esse direito só existe depois da fase de instrução e estará
sujeito as formas que a administração indicar ao particular, claro que dentro
do princípio da legalidade. No fundo, a administração, não obstante ter a
obrigação, em certos casos, de chamar o particular ao procedimento, pode dentro
dos limites do CPA, estipular a forma como decorrerá a audiência, dai que não
seja correto afirmar que se possa tratar de um verdadeiro direito fundamental
uma vez que para que a audiência prévia seja uma realidade é necessário
preencher dois pressupostos: que tenha havido e sido concluída uma fase de
instrução e que a realidade daquele caso concreto não seja reconduzível às
hipóteses do artigo 133º. Parece estranho que haja pressupostos para se
verificar a aplicabilidade de qualquer direito fundamental.
A participação do particular no
procedimento constitui em primeiro lugar um direito subjetivo que
simultaneamente aparece com a mesma força do dever da administração de chamar o
particular. Trata-se antes de tudo isto de um princípio estruturante tomando a
forma de direito subjetivo, mas que não reúne as condições do que se encontra
referido no art 17º CRP. Por esta ordem de ideias, a preterição da fase da
audiência dos interessados no procedimento administrativo deve constitui sem dúvida
alguma uma ilegalidade que encontrará resposta no regime geral da anulabilidade
e não no da nulidade uma vez que não estamos perante um direito de natureza
fundamental e assim tem decidido o Supremo Tribunal Administrativo.
Bibliografia:
Curso de Direito Administrativo,
volume II, 2º edição 2010, Almedina, Diogo Freitas do Amaral
Direito Administrativo Geral,
tomo III, 2ºedição 2009, D. Quixote, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de
Matos
A audiência dos interessados no
procedimento administrativo, 1995 2ª edição, Universidade Católica de Lisboa,
Pedro Machete
Direito Contencioso
Administrativo I, 2005, Lex, Sérvulo Correia
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