O Regime Legal da Responsabilidade Civil Administrativa do Estado: a Responsabilidade por Facto Ilícito
A
primeira observação que a LRCEE justifica prende-se com o seu
âmbito material. Em contraposição com o diploma anterior, o novo
regime legal tem aplicabilidade quanto à resposabilidade civil
extracontratual decorrente de actos das funções administrativa,
legistativa e judicial. A responsabilidade civil extracontratual do
Estado terá lugar nas situações em que o facto constitutivo da
obrigação de indemnizar provenha de danos resultantes do
incumprimento de um contrato, pelo cumprimento defeituoso ou tardio
das obrigações contratuais, nos termos do artigo 325.º e
seguintes, do CCP. Neste contexto, releva acrescentar que a LRCEE
salvaguarda os regimes especiais de responsabilidade civil por danos
decorrentes da função administrativa - como é o caso do regime
jurídico por danos ambientais (artigo 2.º).
No
que toca ao âmbito subjectivo, e embora subsista a referência ao
Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o legislador
expande o âmbito de aplicação subjectiva do novo regime legal às
pessoas colectivas de direito privado que actuem com prerrogativas de
poder público ou sob a égide de princípios e regras de direito
administrativo (artigo 1.º, n.º 2), facilitando a aproximação de
uma concepção material de administração pública como actividade
e não como organização. Aqui ganha relevo a noção de serviço
público material dada por Juan Alfonso Santamaria Pastor, que
consiste numa actividade necessária à sobrevivência da sociedade
em contraposição com a administração pública formal, que não
presta directamente o serviço à população, embora assegure que o
serviço seja realizado por terceiros.
A
LRCEE aplica-se igualmente à responsabilidade dos titulares dos
órgãos sociais e representantes legais ou auxiliares, como se
encontra disposto no art. 1.º, n.º5.
A
propósito do âmbito da aplicação material do novo regime legal,
cabe fazer uma observação: ainda que tenha desaparecido a
referência a actos de gestão pública, a verdade é que a situação
da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade viu o seu
término com a nova lei. Esta aplica-se a acções e omissões
adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou
reguladas por disposições ou princípios de Direito Administrativo.
A
responsabilidade emergente de danos causados no exercício da função
administrativa surgiu ordinariamente como responsabilidade
subjectiva, assim designada por envolver um juízo de censura sobre o
comportamento do causador do prejuízo que, podendo e devendo ter
optado por outra conduta, escolheu deliberadamente aquela que era
censurável, tenho plena consciência de que a mesma seria
potencialmente danosa. Dessa acção ou omissão há-de ter resultado
a ofensa aos direitos ou interesses legalmente protegidos do
particular, como se encontra regulado no artigo 9. º.
Posto
isto, a responsabilização assenta nas ideias de ilicitude e de
culpa.
Começando
pela primeira, esta consiste numa acção ou omissão violadora de
princípios e regras constitucionais, legais ou regulamentares, de
regras técnicas, de deveres objectivos de cuidado (artigo 9.º, n.º
1); ou resultante do funcionamento anormal do serviço (artigo 7.º,
n.º 3). Neste contexto, importa referir a dificuldade de preencher o
requisito da ilicitude devido ao problema da distinção entre
ilicitude e ilegalidade. Este problema levanta a questão da
irrelevância ressarcitória de vícios de forma, de procedimento ou
de competências das actuações administrativas, por não serem
afectadas substancialmente posições jurídicas subjectivas dos
particulares.
A
ilicitude relacionada com a responsabilidade objectiva do Estado pelo
funcionamento anormal do serviço trata-se da consagração legal da
figura francesa da faute du service. Quanto à culpa, esta
decorre de um comportamento adoptado com diligência ou aptidão
inferiores àquelas que fosse razoável exigir, no caso, a um titular
de órgão administrativo, funcionário ou agente zeloso e cumpridor,
com base nos princípios e regras jurídicas relevantes, como
expressa o artigo 10.º, n.º1.
A
culpa pode revestir duas modalidades:
- Culpa
grave, que se regista quando o autor da conduta ilícita tenha
actuado de form dolosa ou diligência e zelo manifestamente
inferiores àquele a que se encontrava obrigado em razão do cargo
(artigo 8.º, n.º1);
- Culpa
leve, que tem ocorrência quando o autor da conduta ilícita haja
actuado com diligência e zelo inferiores - mas não manifestamente
inferiores por comparação à culpa grave -, àqueles a que se
encontrava obrigado.
A
lei, a fim de facilitar a responsabilização, estabelece uma
presunção com base na qual a autoria de um acto jurídico ou o
incumprimento de deveres de vigilância presume automaticamente a
culpa leve (artigo 10.º, n.ºs 2 e 3).
A
eventual contribuição do lesado para a produção do facto danoso
ou para o agravamento dos danos – aquilo que se designa por
concorrência da culpa do lesado – pode conduzir à diminuição ou
mesmo exclusão do direito à indemnização. Considera-se existir
culpa do lesado sempre que este não tenha utilizado os meios
processuais ao seu alcance para eliminar o acto jurídico gerador de
prejuízos, nos termos do artigo 4.º.
Tal
distinção é fundamental para a repartição da responsabilidade,
sendo a responsabilidade do Estado ou de outra entidade pública
exclusiva nas seguintes situações:
-
Quando o autor da conduta ilícita haja actuado no exercício da
função administrativa e, por causa desse exercício, com culpa leve
(artigo 7.º, n.º1);
-
Quando os danos causados sejam imputáveis ao funcionamento anormal
do serviço, mas não tenham resultado de um comportamento
concretamente determinado ou não seja possível apurar a respectiva
autoria (artigo 7.º, n.º3).
Já
quando o autor da conduta ilícita haja actuado de forma dolosa ou
com culpa grave - no exercício das suas funções e por causa desse
exercício -, o Estado ou outra entidade pública são solidariamente
responsáveis com o titular do órgão, funcionário ou agente
(artigo 8.º, n.º2). Para Tiago Viana Barra, seria conveniente
instituir um sistema de contraditório para apurar a responsabilidade
concreta do funcionário. Para o referido autor, tal não seria uma
solução inovadora, visto que esse procedimento é realizado em
Espanha, no Regulamento dos Procedimentos em Responsabilidade
Patrimonial, onde se prevê um procedimento que tem em vista apurar o
nexo de causalidade adequada e o grau de culpa do funcionário no
cálculo da indemnização.
Mantendo-se
a regra de que o Estado ou outra entidade pública poderá ser
obrigado a pagar a totalidade da indemnização determinada pelo
tribunal, mantém-se igualmente o direito de regresso referente às
quantias que deveriam ter sido pagas pelo titular do órgão,
funcionário ou agente. Há que ter ainda em consideração que o
direito de regresso corresponde a um poder vinculado que a
administração tem obrigatoriamente de exercer (artigos 8.º, n.º3,
e 6.º, n.º1). Em todo o caso, o direito de regresso aqui previsto
corresponde aquele que decorre para um devedor solidário, segundo o
regime de direito civil, do facto de ele ter dado satisfação
integral ao direito do credor ou ter dado satisfação ao direito do
credor para além da parte que lhe competia, ao abrigo do artigo
524.º, do CC.
Partindo
do princípio que esta solução pretendia acelerar o exercício do
direito de regresso, a verdade é que tal aparenta não ter sido bem
sucedido, na medida em que não se vislumbra que o tenha conseguido
no domínio dos acordos de indemnização extrajudiciais. A título
de exemplo, menciona-se o conhecido caso do acordo extrajudicial a
que o Estado português foi condenado, no caso da cegueira dos
pacientes do Hospital Santa Maria. Neste caso concreto, foi
constituída uma Comissão de Acompanhamento que avaliou os danos e
estabeleceu um acordo de ressarcimento com os seis doentes que
ficaram permanentemente sem visão, na sequência de uma intervenção
oftalmológica provocada por erro de um funcionário que trocou os
medicamentos na farmácia do referido hospital.
Em
caso de incumprimento do acordo extrajudicial onde o Estado se
compromete a indemnizar os lesados, nada se prevê quanto ao
prosseguimento da acção nos próprios autos.
Nos
trabalhos preparatórios da reforma, Fausto de Quadros manifestou a
necessidade de pôr um fim à inconstitucionalidade por omissão do
Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, resultante da
violação do artigo 22.º CRP, através do acolhimento formal do
princípio da responsabilidade solidária entre a administração e
os seus funcionários ou agentes. Neste âmbito, defendeu
acérrimamente a conversão do direito de regresso em dever
de regresso sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou
dolo. Portanto, salvaguardar-se-ia a defesa dos contribuintes nos
casos de negligência grave ou dolo dos funcionários ou agentes
administrativos. Por conseguinte, apenas em caso de ausência de
culpa - ou em caso de culpa leve da parte destes - não haveria
dever de regresso da administração.
Diogo
Ilyas Baig, n.º 21955
Bibliografia:
- BARRA,
Tiago Viana, A Responsabilidade Civil Administrativa do Estado
- MIRANDA,
Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 8ª edição, 2009
- SANTAMARIA
PASTOR, Juan Alfonso, Principios de Derecho Administrativo, Vol.
II, Madrid, 2009
- OTERO,
Paulo, Direito Constitucional Português, Organização do Poder
Político, Vol II., 2010
Diplomas auxilares:
- Código
do Procedimento Administrativo
- Regime
da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais
Entidades Públicas (LRCEE)
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