domingo, 19 de maio de 2013

O Regime Legal da Responsabilidade Civil Administrativa do Estado: a Responsabilidade por Facto Ilícito


A primeira observação que a LRCEE justifica prende-se com o seu âmbito material. Em contraposição com o diploma anterior, o novo regime legal tem aplicabilidade quanto à resposabilidade civil extracontratual decorrente de actos das funções administrativa, legistativa e judicial. A responsabilidade civil extracontratual do Estado terá lugar nas situações em que o facto constitutivo da obrigação de indemnizar provenha de danos resultantes do incumprimento de um contrato, pelo cumprimento defeituoso ou tardio das obrigações contratuais, nos termos do artigo 325.º e seguintes, do CCP. Neste contexto, releva acrescentar que a LRCEE salvaguarda os regimes especiais de responsabilidade civil por danos decorrentes da função administrativa - como é o caso do regime jurídico por danos ambientais (artigo 2.º).
No que toca ao âmbito subjectivo, e embora subsista a referência ao Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o legislador expande o âmbito de aplicação subjectiva do novo regime legal às pessoas colectivas de direito privado que actuem com prerrogativas de poder público ou sob a égide de princípios e regras de direito administrativo (artigo 1.º, n.º 2), facilitando a aproximação de uma concepção material de administração pública como actividade e não como organização. Aqui ganha relevo a noção de serviço público material dada por Juan Alfonso Santamaria Pastor, que consiste numa actividade necessária à sobrevivência da sociedade em contraposição com a administração pública formal, que não presta directamente o serviço à população, embora assegure que o serviço seja realizado por terceiros.
A LRCEE aplica-se igualmente à responsabilidade dos titulares dos órgãos sociais e representantes legais ou auxiliares, como se encontra disposto no art. 1.º, n.º5.
A propósito do âmbito da aplicação material do novo regime legal, cabe fazer uma observação: ainda que tenha desaparecido a referência a actos de gestão pública, a verdade é que a situação da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade viu o seu término com a nova lei. Esta aplica-se a acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de Direito Administrativo.
A responsabilidade emergente de danos causados no exercício da função administrativa surgiu ordinariamente como responsabilidade subjectiva, assim designada por envolver um juízo de censura sobre o comportamento do causador do prejuízo que, podendo e devendo ter optado por outra conduta, escolheu deliberadamente aquela que era censurável, tenho plena consciência de que a mesma seria potencialmente danosa. Dessa acção ou omissão há-de ter resultado a ofensa aos direitos ou interesses legalmente protegidos do particular, como se encontra regulado no artigo 9. º.
Posto isto, a responsabilização assenta nas ideias de ilicitude e de culpa.
Começando pela primeira, esta consiste numa acção ou omissão violadora de princípios e regras constitucionais, legais ou regulamentares, de regras técnicas, de deveres objectivos de cuidado (artigo 9.º, n.º 1); ou resultante do funcionamento anormal do serviço (artigo 7.º, n.º 3). Neste contexto, importa referir a dificuldade de preencher o requisito da ilicitude devido ao problema da distinção entre ilicitude e ilegalidade. Este problema levanta a questão da irrelevância ressarcitória de vícios de forma, de procedimento ou de competências das actuações administrativas, por não serem afectadas substancialmente posições jurídicas subjectivas dos particulares.
A ilicitude relacionada com a responsabilidade objectiva do Estado pelo funcionamento anormal do serviço trata-se da consagração legal da figura francesa da faute du service. Quanto à culpa, esta decorre de um comportamento adoptado com diligência ou aptidão inferiores àquelas que fosse razoável exigir, no caso, a um titular de órgão administrativo, funcionário ou agente zeloso e cumpridor, com base nos princípios e regras jurídicas relevantes, como expressa o artigo 10.º, n.º1.
A culpa pode revestir duas modalidades:
- Culpa grave, que se regista quando o autor da conduta ilícita tenha actuado de form dolosa ou diligência e zelo manifestamente inferiores àquele a que se encontrava obrigado em razão do cargo (artigo 8.º, n.º1);
- Culpa leve, que tem ocorrência quando o autor da conduta ilícita haja actuado com diligência e zelo inferiores - mas não manifestamente inferiores por comparação à culpa grave -, àqueles a que se encontrava obrigado.
A lei, a fim de facilitar a responsabilização, estabelece uma presunção com base na qual a autoria de um acto jurídico ou o incumprimento de deveres de vigilância presume automaticamente a culpa leve (artigo 10.º, n.ºs 2 e 3).
A eventual contribuição do lesado para a produção do facto danoso ou para o agravamento dos danos – aquilo que se designa por concorrência da culpa do lesado – pode conduzir à diminuição ou mesmo exclusão do direito à indemnização. Considera-se existir culpa do lesado sempre que este não tenha utilizado os meios processuais ao seu alcance para eliminar o acto jurídico gerador de prejuízos, nos termos do artigo 4.º.
Tal distinção é fundamental para a repartição da responsabilidade, sendo a responsabilidade do Estado ou de outra entidade pública exclusiva nas seguintes situações:
- Quando o autor da conduta ilícita haja actuado no exercício da função administrativa e, por causa desse exercício, com culpa leve (artigo 7.º, n.º1);
- Quando os danos causados sejam imputáveis ao funcionamento anormal do serviço, mas não tenham resultado de um comportamento concretamente determinado ou não seja possível apurar a respectiva autoria (artigo 7.º, n.º3).
Já quando o autor da conduta ilícita haja actuado de forma dolosa ou com culpa grave - no exercício das suas funções e por causa desse exercício -, o Estado ou outra entidade pública são solidariamente responsáveis com o titular do órgão, funcionário ou agente (artigo 8.º, n.º2). Para Tiago Viana Barra, seria conveniente instituir um sistema de contraditório para apurar a responsabilidade concreta do funcionário. Para o referido autor, tal não seria uma solução inovadora, visto que esse procedimento é realizado em Espanha, no Regulamento dos Procedimentos em Responsabilidade Patrimonial, onde se prevê um procedimento que tem em vista apurar o nexo de causalidade adequada e o grau de culpa do funcionário no cálculo da indemnização.
Mantendo-se a regra de que o Estado ou outra entidade pública poderá ser obrigado a pagar a totalidade da indemnização determinada pelo tribunal, mantém-se igualmente o direito de regresso referente às quantias que deveriam ter sido pagas pelo titular do órgão, funcionário ou agente. Há que ter ainda em consideração que o direito de regresso corresponde a um poder vinculado que a administração tem obrigatoriamente de exercer (artigos 8.º, n.º3, e 6.º, n.º1). Em todo o caso, o direito de regresso aqui previsto corresponde aquele que decorre para um devedor solidário, segundo o regime de direito civil, do facto de ele ter dado satisfação integral ao direito do credor ou ter dado satisfação ao direito do credor para além da parte que lhe competia, ao abrigo do artigo 524.º, do CC.
Partindo do princípio que esta solução pretendia acelerar o exercício do direito de regresso, a verdade é que tal aparenta não ter sido bem sucedido, na medida em que não se vislumbra que o tenha conseguido no domínio dos acordos de indemnização extrajudiciais. A título de exemplo, menciona-se o conhecido caso do acordo extrajudicial a que o Estado português foi condenado, no caso da cegueira dos pacientes do Hospital Santa Maria. Neste caso concreto, foi constituída uma Comissão de Acompanhamento que avaliou os danos e estabeleceu um acordo de ressarcimento com os seis doentes que ficaram permanentemente sem visão, na sequência de uma intervenção oftalmológica provocada por erro de um funcionário que trocou os medicamentos na farmácia do referido hospital.
Em caso de incumprimento do acordo extrajudicial onde o Estado se compromete a indemnizar os lesados, nada se prevê quanto ao prosseguimento da acção nos próprios autos.
Nos trabalhos preparatórios da reforma, Fausto de Quadros manifestou a necessidade de pôr um fim à inconstitucionalidade por omissão do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, resultante da violação do artigo 22.º CRP, através do acolhimento formal do princípio da responsabilidade solidária entre a administração e os seus funcionários ou agentes. Neste âmbito, defendeu acérrimamente a conversão do direito de regresso em dever de regresso sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo. Portanto, salvaguardar-se-ia a defesa dos contribuintes nos casos de negligência grave ou dolo dos funcionários ou agentes administrativos. Por conseguinte, apenas em caso de ausência de culpa - ou em caso de culpa leve da parte destes - não haveria dever de regresso da administração.

Diogo Ilyas Baig, n.º 21955

Bibliografia:
- BARRA, Tiago Viana, A Responsabilidade Civil Administrativa do Estado
- MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, 8ª edição, 2009
- SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso, Principios de Derecho Administrativo, Vol. II, Madrid, 2009
- OTERO, Paulo, Direito Constitucional Português, Organização do Poder Político, Vol II., 2010

Diplomas auxilares:
- Código do Procedimento Administrativo
- Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (LRCEE)

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