O Público e o Privado constituem a oposição
por natureza, a água e azeite dos ordenamentos jurídicos. Não há bom nem mau,
nem melhor ou pior, mas sim dois ramos diferentes que, durante largos anos,
gozaram de uma paz relativa dada a clareza das fronteiras que se estabeleciam
entre ambos. Em boa verdade, a raia era tão explícita que as zonas cinzentas
eram insignificâncias facilmente supríveis pela Lei. Nos meandros dela,
contudo, e acompanhando a função do Estado-Administrador desde o advento do
Estado Social de Direito, surgiu uma oposição entre dois vultos, que não cabiam
nem no Direito Público, nem no Direito Privado. Com a expansão da Administração
Pública e intensificação do relevo do interesse público como finalidade orgânico-funcional,
surge uma contraposição que, problematicamente, se instalou na fronteira entre
os dois braços do Direito. Surge o confronto entre gestão pública e gestão privada.
Face ao debate entre ambas as figuras no
âmbito das aulas práticas, não será oportuno nem de bom grado que se defenderá
a posição publicista neste post. Pelo
contrário, cumpre-me agora, na matéria, aduzir argumentos a favor do Direito Privado.
A questão ganhou particular brilho a partir
de 1967, com o Decreto-Lei 48 051. Com o regime, o debate ganhava agora corpo
legal: Regendo aquele as actividades das pessoas colectivas Públicas e do
Estado em sede de gestão pública, estas seriam responsabilizadas civilmente
aquando da mala praxis de actos de
gestão privada através dos artigos 500º e 501º CC, isto é, nos mesmos termos da
figura da comissão.
No seguimento da discussão, a doutrina
elencou as distinções, mais ou menos pacíficas, entre gestão pública e gestão
privada. Segundo ANTUNES VARELA, aquela constituiria o conjunto de actos que visariam a satisfação de interesses
colectivos através da realização de fins específicos do Estado ou de outro ente
público, assentando sobre o poder de autoridade da entidade que os pratica.
Por outro lado, gestão privada seria o
conjunto de actos que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou
representantes do Estado ou de outros entes públicos sujeitos às mesmas regras,
que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares.
Sinteticamente, na prática de actos de gestão privada, o Estado era equiparado,
para efeitos de actuação, a um particular. O facto de ver a posição estatal
reduzida à de um mero particular surtiu um efeito alérgico na doutrina
publicista. MARCELO CAETANO e FREITAS DO AMARAL fizeram a distinção: É gestão pública a actividade da
Administração regulada pelo Direito Público, e Gestão Privada a parte da
Administração regulada pelo Direito Privado.
A falta de pragmatismo na distinção colocada
pelo lado privatista revelava uma tentativa de desvio de controlo dos actos da
Administração Pública do Direito Público. A questão, na prática, traduzia-se
simplesmente na tomada de jurisdição sobre actos
materiais ou factos integrados
numa actividade de natureza não jurídica, que seriam remetidos para os
tribunais judiciais. As demais questões seriam enquadradas na jurisdição
administrativa.
Esta contenda fazia surgir, num mar publicista, uma aldeia gaulesa
privatista, que resistia às constantes investidas jurisprudenciais e doutrinárias,
mesmo após apresentação da Proposta de Lei 95/VIII, que deu um contributo
fundamental para a determinação da jurisdição no âmbito do novo ETAF. Com este,
surgiram fortes argumentos a favor da tese publicista (nomeadamente advindos do
artigo 4º/1 ETAF), assim como do CPA (artigo 2º/5 CPA). Acrescia a este tese o
forte argumento de que qualquer acto praticado pela Administração, por muito
material ou não jurídico que fosse, estaria vinculado aos princípios que regiam
a actividade administrativa e, como tal, seria colocado na jurisdição
administrativa.
Mas o novo regime de responsabilidade
extracontratual do Estado e demais entidades públicas, a Lei 67/2007, veio
suscitar novas questões. O artigo 1º/5 in
fine veio trazer uma nova limitação à querela, que já parecia “morta e
enterrada” pelas interpretações do ETAF e CPA. Dispõe este artigo que a lei
apenas se aplicaria a entes privados que se encontrasses no exercício de
prerrogativas de Direito Público. Significaria isso, numa lógica a contrario sensu, que as demais
entidades privadas estariam abrangidas pela jurisdição comum (uma vitória para
o Direito Privado!). Mas os argumentos não se ficavam por aqui.
Os tribunais administrativos não estavam, por
uma questão de determinação jurisdicional, habituados a debruçar-se sobre
litígios de direito privado, pelo que se revelaria preferível (e por razões
lógicas de desburocratização, em cumprimento do mandato constitucional para o
efeito) deixar os actos de gestão privada para os tribunais comuns. Faria, em
boa verdade, mais sentido, dado que a distinção entre actos de gestão pública e
actos de gestão privada já seria bastante pacífica e aceite, pelo que não faria
mais sentido litigar sobre a determinação da jurisdição aplicável ao caso
concreto. No entanto, a tese da uniformização, aliada às disposições do CPA e ETAF,
acabaram por prevalecer, e a aldeia gaulesa caiu por fim.
Em suma, podemos afirmar que a gestão privada
não é mais que uma questão exportada para o Direito Público e agora tratada por
este, constituindo o caso paradigmático de inversão da tendência que constituía
a “fuga para o Direito Privado”. Ganha agora maiores asas (e maiores
fronteiras) o Direito Administrativo, e prevalece mais uma vez o publicismo
pelo seu forte e expressivo vínculo ao interesse público e princípio da
legalidade, sem esquecer os demais que deles escoam.
Paulo Fernando Ramos
BIBLIOGRAFIA E DIPLOMAS
- BARRA, Tiago Viana. A Responsabilidade Civil Administrativa do Estado
- FERREIRA DE ALMEIDA, José Manuel Bento. As várias categorias de pessoas colectivas e a responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública e por actos de gestão privada
- FREIRAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo - Vol. II
- Constituição da República Portuguesa
- Código do Procedimento Administrativo
- Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (LRCEE) - Lei 67/2007
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