Qual a relação que se estabelece entre o regulamento e a lei?
O regulamento
corresponde, nos termos do 120º CPA, a uma decisão (acto positivo, imaterial e
unilateral) de um órgão da Administração Pública (acto de administração) que, à
luz do Direito Público (acto de gestão pública), visa produzir efeitos
jurídicos (acto jurídico) em situações gerais e abstractas (acto normativo). A
principal diferença entre o regulamento e os demais actos administrativos
reside no facto de conter comandos gerais e abstractos, ou seja, normas
jurídicas.
Relativamente
à lei, o regulamento distingue-se por traduzir o exercício da função
administrativa, ao passo que a lei traduz o exercício da função legislativa,
não existindo neste ponto grande discussão doutrinária. Alguns privatistas
consideram regulamento como lei em sentido material, partindo da construção
clássica de que a lei é caracterizada pela generalidade e abstracção. O facto é
que a CRP exclui essa admissibilidade materialidade de lei, por não incluir o
regulamento no acervo do 112º/1.
Traduzindo-se
o regulamento numa manifestação da função administrativa, decorre
necessariamente a sua sujeição ao princípio da legalidade, quer na sua dimensão
de preferência de lei, quer na sua dimensão de reserva de lei. Assim, o
regulamento que contrarie o bloco da legalidade gera ilegalidade e é tido por
inválido. Nos termos do 112º/5 CRP, são proibidos os regulamentos delegados.
Porém, admite-se a deslegalização, ou seja, a operação legislativa de
abaixamento do grau hierárquico de uma disciplina normativa até então constante
de lei, acompanhada de uma habilitação legal para emissão de regulamentos sobre
a matéria em causa, desde que não incida sobre matérias sujeitas a reserva de
lei. Uma lei posterior revoga um regulamento que seja contrário àquilo que ela
dispõe. A revogação ou cessação de vigência da lei habilitante da emissão de
determinado regulamento implica a cessação da vigência por caducidade, salvo se
for salvaguardada por lei. A interpretação dos regulamentos deve ser conforme à
lei, o que decorre da primazia da hierarquia da lei e do principio do
aproveitamento dos actos jurídicos, devendo ser positivamente orientada para a
prossecução plena e integral dos fins da lei regulamentada, como consequência
da natureza secundária da função administrativa. A lei não deixa à administração
qualquer margem de liberdade na eleição dos fins da sua actuação, constituindo
simultaneamente limite e fundamento da actividade legislativa. Assim, os
regulamentos ilegais devem ser desaplicados pelos tribunais, nos termos do 204º
CRP, por identidade de razão e nos termos do 73º/2 CPTA, sendo susceptíveis de
impugnação contenciosa, na sequência da
qual os tribunais administrativos podem, em determinadas condições, declarar a
sua ilegalidade com força obrigatória geral, nos termos do 268º/5 CRP e 72º/1,
2 e 4 e 76º/2 CPTA. Decorre do princípio da legalidade que os regulamentos têm
de ser habilitados por lei, podendo então o grau de densidade normativa variar.
Ao contrário do que alguma doutrina sustenta, o Professor Marcelo Rebelo de
Sousa considera que não existem excepções à sujeição dos regulamentos à reserva
de lei, nomeadamente no que toca aos regulamentos internos. Assim, os
regulamentos hierárquicos e os regimentos não decorrem, respectivamente, de
poderes imanentes de direcção ou de auto-organização, mas necessariamente de
poderes legalmente conferidos. Em regra, são proibidos regulamentos
retroactivos, apenas sendo permitidos nos casos em que a lei o admita, sob pena
de reserva de lei. O Professor Marcelo Rebelo de Sousa considera que não existe
qualquer possibilidade genérica de retroactividade de regulamentos favoráveis
aos seus destinatários, ao contrário do que entende o Professor Freitas do
Amaral, que fundamenta a retroactividade dos actos administrativos favoráveis
pela habilitação legal do 128º/2 al. a) CPA. O Professor Marcelo Rebelo de
Sousa critica esta posição, na medida em que não existe qualquer habilitação
similar ao 128º/ al. a) CPA para os regulamentos.
Os
regulamentos têm uma hierarquia entre si, tendo em conta três critérios: a
posição do órgão emissor, o âmbito territorial das atribuições prosseguidas
pela pessoa colectiva que pertence ao órgão emissor e a forma regulamentar.
Tendo em conta
a posição do órgão emissor, os regulamentos emitidos pelo Governo e órgãos de
soberania são hierarquicamente superiores em relação a todos os restantes
regulamentos administrativos, e os regulamentos emitidos por órgãos
supraordenadores são hierarquicamente superiores àqueles que sejam emitidos
pelos órgãos que lhes sejam infraordenados. O 241º CRP contém um afloramento
deste princípio.
Segundo o
critério do âmbito geográfico das atribuições prosseguidas, os regulamentos
emitidos por órgãos inseridos em pessoas colectivas cujas atribuições sejam de
âmbito territorial mais amplo são hierarquicamente superiores àqueles emitidos
por órgãos inseridos em pessoas colectivas cujas atribuições sejam de âmbito
territorial mais restrito. Este critério também decorre do 241º CRP.
Pelo critério
da forma, os regulamentos de forma mais solene são hierarquicamente superiores
aos revestidos de forma menos solene.
Os Professores
Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa salientam que estes critérios de
hierarquia regulamentar não são absolutos, pelo que o critério da posição do
órgão emissor e o critério do âmbito geográfico das atribuições prosseguidas
cedem quanto a regulamentos de órgãos infraordenados e/ou que visem a
prossecução de atribuições geograficamente menos amplas, que tenham sido
emitidos ao abrigo de reservas sectoriais de administração. Na ausência de
critério constitucional de prevalência dos regulamentos estaduais sobre os
regulamentos autonómicos, deve entender-se que estes podem, no espaço regional,
derrogar os regulamentos estaduais habilitados por leis e decretos-leis que não
tenham reservado para órgãos da República a competência regulamentar, nos
termos do 227º/1 al. d).
Em caso de
igual hierarquia de dois regulamentos é necessário aferir da prevalência de um
face ao outro através dos critérios da generalidade, especialidade e
exceptionalidade normativas ou de sucessão temporal entre os actos jurídicos.
Mariana Baptista de Freitas.
21873.
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