sábado, 15 de dezembro de 2012


      Hierarquia em Órgãos Colegiais: Verdadeira Hierarquia?


A Hierarquia, define-a o Professor FREITAS DO AMARAL do seguinte modo: “ É o modelo de organização administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior poder de direcção e impõe ao subalterno um dever de obediência”.  Das primeiras palavras que encontramos nesta definição conseguimos, desde logo, descortinar um caminho claro para a questão acima colocada. O Professor, dissipa quaisquer dúvidas quando se refere a uma organização vertical. Ora, em órgãos de cariz colegial esta organização será, necessariamente, horizontal. Isto quer dizer que, à partida não se verificará qualquer ascendente em termos no seio do órgão. Exemplo disso é a Assembleia da República, em que um deputado tem tantos votos como outro e o seu poder de decisão é, objectiva e marginalmente, equivalente ao do seu homólogo de qualquer outra bancada parlamentar. Mas avaliemos a questão de forma mais pormenorizada.
Assim, partimos da noção de que a Administração Pública não é somente composta por órgãos singulares ou unipessoais, integra também uma série de órgãos colegiais, dotados das mais diversas funções; estas serão de natureza deliberativa, executiva, consultiva ou de controlo.
Quanto às relações entre a hierarquia administrativa, atrás definida, e os órgãos colegiais, a doutrina, como afirma PAULO OTERO, tem hesitado entre três concepções distintas: Uma pela incompatibilidade absoluta, outra pela compatibilidade total e uma última pela admissibilidade teórica de coexistência entre as duas realidades.
A primeira tese é sustentada por FREITAS DO AMARAL. O professor de Lisboa, discorre sobre a temática no seu livro Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, sustenta que a colegialidade é incompatível coma subordinação hierárquica. Assim, a criação de um órgão colegial pressuporia, nas palavras do professor, a intenção de lhe conferir independência na apreciação dos assuntos incluídos na sua esfera de competência. Não faria, pois, sentido constituir um colégio cujo propósito não fosse a discussão livre e a deliberação sem coacção, em relação às matérias sobre as quais lhe competiria decidir. De facto, estes são, na generalidade, órgãos administrativamente autónomos, gerindo serviços ou desempenhando funções em regime de integração diferenciada. Ora, autonomia é o contrário de hierarquia.
A segunda concepção foi sustentada em Portugal por LUDGERO NEVES. Este, defende a inexistência, ou uma existência muito ténue, de uma hierarquia nas relações internas dos ditos colégios, aqui reinaria o princípio da maioria, em que a vontade de um só não se imporia, discricionariamente sobre os desígnios do conjunto por decisão dotada de supremacia hierárquica. Diferente questão seria quando se falasse em hierarquia na relação externa, na relação intercolegial, quando se consideraria cada órgão como uma unidade. Como é que tal situação sucederia, não fica claro nos escritos de LUDGERO NEVES.
A terceira tese surge pela pena de ARNALDO DE VALLES. Este sustenta que não há razão para excluir a relação de subordinação hierárquica no tocante a órgãos colegiais somente pela sua estrutura. Todavia, o referido autor afirma desconhecer qualquer exemplo de órgão colegial que se encontre hierarquicamente subordinado. Já SANTI ROMANO, admite que os mesmos possam estar sujeitos a poderes de controlo e a instruções interpretativas, uma espécie de hierarquia mitigada.
De qualquer modo, não há forma de encontrar consenso, nem mesmo na jurisprudência que tem saído do Supremo Tribunal Administrativo. A realidade é que há que, de facto, separar a questão numa bipartição lógica: a relação interna e a relação externa dos órgãos colegiais. Num primeiro plano, há que dizer que, efectivamente, estes colégios têm uma forma muito característica de formar a sua vontade, que apesar de surgir como una não depende nem de um elemento, nem, na grande maioria dos casos, de todos; impera aqui o princípio da maioria, como ficou já patente atrás. Logicamente, não se considera o voto de qualidade do presidente, por exemplo, como uma verdadeira relação hierárquica, já que, ele apenas serve como desempate. Imaginemos um caso em que o presidente é chamado a votar na generalidade como todos os outros membros do órgão colegial, e em dez elementos apenas dois votam de acordo com o presidente, isto não quer dizer que o seu voto seja superior aos outros sete. Não há hierarquia, mas antes uma expressão normal da necessidade de manter o funcionamento do órgão de forma eficiente para que não sucedam bloqueios.  Mais ainda, o exercício das funções de cada agente dentro do órgão são livres e não podem ser condicionadas. No plano externo, esta mesma lógica se mantém. Não parece fazer muito sentido que um órgão tenha competência administrativa, que tenha um verdadeiro poder de decisão sobre outro ingerindo-se no exercício das competências deste. Aquele que tem competência originaria não pode, de modo algum, ser coagido ou orientado sob pretexto de uma relação de superior-subalterno. Esse poder de decisão, segundo o professor PAULO OTERO, termina onde começa a competência do outro órgão.  Isto é por demais evidente no caso dos órgãos colegiais consultivos, os quais têm uma função de aconselhar e dar parecer sobre certas matérias. Esta é uma função que exige uma liberdade e espontaneidade que não se coaduna com a hierarquia administrativa.
Em suma, conclui-se, como PAULO OTERO ou FREITAS DO AMARAL, que não existe, nem pode existir, uma hierarquia administrativa no seio da Administração Pública entre órgãos colegiais ou dentro destes. Este é um conceito que não se identifica com a noção de colegialidade e que não pode, portanto, competir com ela, têm espaços diferentes, não estão, se é que se pode dizer em jeito de brincadeira, na mesma cadeia hierárquica.

Ricardo Afonso Lira Gonçalves
Nº 21964


OTERO, Paulo, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo Vol. I, Almedina, 2ª Edição, 2000
NEVES, Ludgero, Direito Admnistrativo, Empreza Lusitana Editora

0 comentários:

Enviar um comentário