Hierarquia em Órgãos Colegiais: Verdadeira Hierarquia?
A Hierarquia, define-a o Professor FREITAS DO AMARAL do
seguinte modo: “ É o modelo de organização
administrativa vertical, constituído por dois ou mais órgãos e agentes com atribuições
comuns, ligados por um vínculo jurídico que confere ao superior poder de direcção
e impõe ao subalterno um dever de obediência”. Das primeiras palavras que encontramos nesta
definição conseguimos, desde logo, descortinar um caminho claro para a questão
acima colocada. O Professor, dissipa quaisquer dúvidas quando se refere a uma
organização vertical. Ora, em órgãos de cariz colegial esta organização será,
necessariamente, horizontal. Isto quer dizer que, à partida não se verificará
qualquer ascendente em termos no seio do órgão. Exemplo disso é a Assembleia da
República, em que um deputado tem tantos votos como outro e o seu poder de
decisão é, objectiva e marginalmente, equivalente ao do seu homólogo de qualquer
outra bancada parlamentar. Mas avaliemos a questão de forma mais pormenorizada.
Assim, partimos da noção de que a Administração Pública não é
somente composta por órgãos singulares ou unipessoais, integra também uma série
de órgãos colegiais, dotados das mais diversas funções; estas serão de natureza
deliberativa, executiva, consultiva ou de controlo.
Quanto às relações entre a hierarquia administrativa, atrás
definida, e os órgãos colegiais, a doutrina, como afirma PAULO OTERO, tem
hesitado entre três concepções distintas: Uma pela incompatibilidade absoluta,
outra pela compatibilidade total e uma última pela admissibilidade teórica de coexistência
entre as duas realidades.
A primeira tese é sustentada por FREITAS DO AMARAL. O
professor de Lisboa, discorre sobre a temática no seu livro Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, sustenta
que a colegialidade é incompatível coma subordinação hierárquica. Assim, a criação
de um órgão colegial pressuporia, nas palavras do professor, a intenção de lhe
conferir independência na apreciação dos assuntos incluídos na sua esfera de competência.
Não faria, pois, sentido constituir um colégio cujo propósito não fosse a discussão
livre e a deliberação sem coacção, em relação às matérias sobre as quais lhe competiria
decidir. De facto, estes são, na generalidade, órgãos administrativamente
autónomos, gerindo serviços ou desempenhando funções em regime de integração
diferenciada. Ora, autonomia é o contrário de hierarquia.
A segunda concepção foi sustentada em Portugal por LUDGERO
NEVES. Este, defende a inexistência, ou uma existência muito ténue, de uma hierarquia
nas relações internas dos ditos colégios, aqui reinaria o princípio da maioria, em
que a vontade de um só não se imporia, discricionariamente sobre os desígnios do
conjunto por decisão dotada de supremacia hierárquica. Diferente questão seria quando se falasse em hierarquia na relação externa, na relação intercolegial,
quando se consideraria cada órgão como uma unidade. Como é que tal situação
sucederia, não fica claro nos escritos de LUDGERO NEVES.
A terceira tese surge pela pena de ARNALDO DE VALLES. Este
sustenta que não há razão para excluir a relação de subordinação hierárquica no
tocante a órgãos colegiais somente pela sua estrutura. Todavia, o referido
autor afirma desconhecer qualquer exemplo de órgão colegial que se encontre hierarquicamente
subordinado. Já SANTI ROMANO, admite que os mesmos possam estar sujeitos a
poderes de controlo e a instruções interpretativas, uma espécie de hierarquia mitigada.
De qualquer modo, não há forma de encontrar consenso, nem
mesmo na jurisprudência que tem saído do Supremo Tribunal Administrativo. A
realidade é que há que, de facto, separar a questão numa bipartição lógica: a
relação interna e a relação externa dos órgãos colegiais. Num primeiro plano, há
que dizer que, efectivamente, estes colégios têm uma forma muito característica
de formar a sua vontade, que apesar de surgir como una não depende nem de um
elemento, nem, na grande maioria dos casos, de todos; impera aqui o princípio
da maioria, como ficou já patente atrás. Logicamente, não se considera o voto
de qualidade do presidente, por exemplo, como uma verdadeira relação hierárquica,
já que, ele apenas serve como desempate. Imaginemos um caso em que o presidente
é chamado a votar na generalidade como todos os outros membros do órgão colegial,
e em dez elementos apenas dois votam de acordo com o presidente, isto não quer
dizer que o seu voto seja superior aos outros sete. Não há hierarquia, mas
antes uma expressão normal da necessidade de manter o funcionamento do órgão de
forma eficiente para que não sucedam bloqueios.
Mais ainda, o exercício das funções de cada agente dentro do órgão são livres
e não podem ser condicionadas. No plano externo, esta mesma lógica se mantém. Não
parece fazer muito sentido que um órgão tenha competência administrativa, que
tenha um verdadeiro poder de decisão sobre outro ingerindo-se no exercício das competências
deste. Aquele que tem competência originaria não pode, de modo algum, ser
coagido ou orientado sob pretexto de uma relação de superior-subalterno. Esse poder
de decisão, segundo o professor PAULO OTERO, termina onde começa a competência do
outro órgão. Isto é por demais evidente
no caso dos órgãos colegiais consultivos, os quais têm uma função de aconselhar
e dar parecer sobre certas matérias. Esta é uma função que exige uma liberdade
e espontaneidade que não se coaduna com a hierarquia administrativa.
Em suma, conclui-se, como PAULO OTERO ou FREITAS DO AMARAL,
que não existe, nem pode existir, uma hierarquia administrativa no seio da
Administração Pública entre órgãos colegiais ou dentro destes. Este é um conceito que não se
identifica com a noção de colegialidade e que não pode, portanto, competir com ela, têm espaços diferentes, não estão, se é que se pode dizer em jeito de brincadeira, na mesma cadeia hierárquica.
Ricardo Afonso Lira Gonçalves
Nº 21964
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo Vol. I, Almedina, 2ª Edição, 2000
NEVES, Ludgero, Direito Admnistrativo, Empreza Lusitana Editora
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