O
acto administrativo consiste numa forma de actuação do Direito Administrativo
que nem sempre teve a posição apagada que hoje ocupa, tendo sido um dia a
figura central deste ramo de Direito. Este define-se inicialmente como
declaração unilateral (acto) concreta de um órgão, e tem hoje consagração no
art 20º do CPA: “… decisão dos Orgãos da Administração que ao abrigo das normas
de Direito Público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e
concreta.”. É, segundo Marcello Caetano, “decisão que regula o caso concreto e
que tem força executória própria”.
Antes
de se falar concretamente no aparecimento do acto administrativo, é importante analisar o
Contencioso administrativo (que nasce em França), ao qual Vasco Pereira da
Silva se refere como o “berço” da noção de decisão jurídico-pública. Segundo
Freitas de Amaral este é um conceito que delimita certos comportamentos da
Administração, mas que os delimita em função da fiscalização da actividade
administrativa pelos Tribunais.
O acto
administrativo é uma criação do Direito Administrativo moderno, período pós-revoluções liberais, que iniciam o Liberalismo. Pode dizer-se que o
acto administrativo se encontrava no centro, podendo desta forma defender-se que se estava perante uma
visão actocêntrica. A revolução francesa e o princípio da separação de poderes
levam à criação de um contencioso privativo da Administração. Assim é devido à interpretação
heterodoxa (contra os princípios liberais) que se faz do princípio da separação
de poderes, que vai determinar a criação de uma justiça especial para a
Administração, que numa primeira fase nem chega a existir dada a total confusão
entre administrar e julgar, “em vez de se considerar que julgar a Administração
é ainda administrar e que a jurisdição era o complemento da acção
administrativa” (Portalis). Isto significa que o Direito que é produzido nestes
tribunais defende a Administração, uma vez que se sentia a
necessidade de criar um direito autónomo que a protegesse. Por outro lado, conscientes
da experiência anterior, os revolucionários franceses após a conquista do
poder, receavam que o controlo da actuação daquela pelos tribunais
ordinários pudesse pôr em causa a “nova ordem” estabelecida criando entraves à actuação das autoridades administrativas.
Assim a criação
do Contencioso administrativo demonstra a tendência francesa para a
concentração e a centralização do poder. No entanto, e apesar da mudança de poder,
cria-se em França, num momento posterior, um Conselho de Estado – órgão fiscalizador da
Administração criado por Napoleão entre 1799 e 1822 –, adoptando uma velha instituição
do Antigo Regime. Mantém-se também a situação que se encontrava anteriormente em
relação ao poder judicial.
Este é o período
da Administração-juiz, realizada em nome dos princípios do liberalismo político,
embora esta tenha origem não só nestes como também na longa experiência do
Antigo Regime. Segundo Santamaria Pastor “o Estado liberal é um autêntico
herdeiro – a benefício do inventário – do monarca absoluto, como se manifesta,
sobretudo, no âmbito da Administração Pública: o Direito Administrativo será o
ponto de convergência das técnicas de acção absolutistas com as exigências de
liberdade e garantia que a grande revolução traz”. Considera-se que a
administração aqui levada a cabo era agressiva, determinada pelas
circunstâncias da época e simultaneamente por factores de momentos anteriores, como
era o caso do Conselho de Estado, órgão resistente do Antigo Regime que
fiscalizava a Administração. Este modelo de administração é um modelo centrado,
procedendo-se a um sistema de controlo dessa, que desaparece no Estado social.
De acordo com
Freitas do Amaral, o acto administrativo e o contencioso administrativo estão
ligados, uma vez que a principal função prática do conceito de acto
administrativo é, num primeiro momento, a delimitação dos comportamentos da
Administração susceptíveis de recurso contencioso para fins de garantia dos
particulares, servindo de garantia da Administração: o particular vê-se
confrontado com uma situação de redução, uma vez que não possui direitos
perante a Administração, sendo considerado como objecto do poder (neste período
os particulares não são considerados como sujeitos de direito); num segundo
momento - de plena jurisdicionalização do contencioso - o acto administrativo passa a definir as
actuações da Administração Pública sujeitas ao controlo dos tribunais
administrativos, funcionando ao serviço das garantias dos particular, considerando-se aqui como protector das garantias dos particulares, encarnando a lógica da noção liberal
do Estado. O acto desempenhava uma função dupla: por um lado era privilégio da
Administração, manifestação do poder administrativo no caso concreto, susceptível
de ser imposto pela via coactiva aos particulares e, por outro lado, era
instrumento de garantia dos particulares pois abre-lhes acesso à Justiça. Neste
último caso o particular recorrente exerceria um direito à legalidade cuja
titularidade seria da colectividade, o que mostra que o titular não era sujeito
de direitos perante a Administração.
Desta forma,
neste período, o acto administrativo é o centro das concepções do Direito
Administrativo, materializando-se no poder autoritário de decidir, nos
privilégios exorbitantes que concedia (defendido em França por Maurice Hauriou)
e, ainda, no poder coactivo para os executar (defendido na Alemanha por Otto
Mayer). Estes dois autores são os grandes pais do Direito Administrativo, que
partilham um elemento nas suas teorias: a ideia do acto administrativo como
exercício do poder administrativo. Hauriou, em França, vai defender o acto como
produtor de efeitos jurídicos aplicáveis de forma autoritária, realçando o
aspecto voluntário da conduta. Já Otto Mayer realiza um acto de defesa do
direito aplicável a um particular, pelo que o aspecto voluntário carece de
autonomia. Este autor vai introduzir e teorizar o conceito de acto
administrativo no século XIX na Alemanha, onde este terá grande independência
em relação à lei e basear-se-á tanto no Direito Administrativo francês como
no Direito Civil alemão.
O acto
administrativo trata-se de uma cristalização jurídica dos pressupostos ideológicos
do Estado liberal, adequando-se perfeitamente às circunstâncias histórico-políticas
do ambiente em que foi criado e teorizado. Com a alteração deste ambiente na
passagem para o Estado social, no qual desaparece o modelo liberal de Estado,
desmorona-se o sistema político em que assentava, perde a flexibilidade e
adequação para a resolução dos novos problemas com que se defrontava a moderna
Administração, o acto administrativo vai, como refere Vasco Pereira da Silva, adquirir rigidez “post
mortem”.
O acto
administrativo entra em declínio na transição para o século XIX, o tempo do
Estado Social, na qual a Administração passa de agressiva a prestadora, o que
leva à necessidade de repensá-la. Deixa de existir uma visão actocêntrica,
característica da época anterior, na qual o acto administrativo era a forma de
actuação única para esta se dissipar no meio de outras formas de actuar que ganham força. É necessário agora acompanhar o acto no processo
administrativo, e este transforma-se: cria direitos e não é precisa a sua
aplicação coactiva. A Administração descentraliza-se, já não depende do
Governo devido às novas entidades que estão lado a lado com este na execução do
Direito Administrativo.
Na actualidade
o acto administrativo não deixa de existir, apenas se tornou numa forma de
actuar que perdeu a sua importância em relação a outras que emergiram durante o
Estado Social. Nos anos 70 do século XX há uma nova dimensão de Administração,
a infraestrutural, havendo uma produção de actos administrativos em massa que
afectavam os particulares, visto estes terem eficácia em relação a terceiros.
Este continua a ser praticado, embora já não nos mesmos moldes em que o era no
período liberal, uma vez que se trata de uma cristalização da conjuntura histórica,
política, económica e social que nesse período se vivia e específicamente para o qual ele é criado.
Hoje, a
principal função prática do conceito de acto administrativo é a de delimitar
comportamentos susceptíveis de fiscalização contenciosa, o que consta do art.
268º/4 CRP – o acto administrativo aparece aqui a delimitar os comportamentos
da Administração que são susceptíveis de recurso contencioso para fins de
garantia dos particulares, o que mostra que, apesar das "complicações" este sobreviveu!
Bibliografia:
Vasco Pereira
da Silva – “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”
Sara Oliveira, nº21870
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