segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Acto Administrativo: nascimento, vida e "morte"


       O acto administrativo consiste numa forma de actuação do Direito Administrativo que nem sempre teve a posição apagada que hoje ocupa, tendo sido um dia a figura central deste ramo de Direito. Este define-se inicialmente como declaração unilateral (acto) concreta de um órgão, e tem hoje consagração no art 20º do CPA: “… decisão dos Orgãos da Administração que ao abrigo das normas de Direito Público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.”. É, segundo Marcello Caetano, “decisão que regula o caso concreto e que tem força executória própria”.

     Antes de se falar concretamente no aparecimento do acto administrativo, é importante analisar o Contencioso administrativo (que nasce em França), ao qual Vasco Pereira da Silva se refere como o “berço” da noção de decisão jurídico-pública. Segundo Freitas de Amaral este é um conceito que delimita certos comportamentos da Administração, mas que os delimita em função da fiscalização da actividade administrativa pelos Tribunais.

O acto administrativo é uma criação do Direito Administrativo moderno, período pós-revoluções liberais, que iniciam o Liberalismo. Pode dizer-se que o acto administrativo se encontrava no centro, podendo desta forma defender-se que se estava perante uma visão actocêntrica. A revolução francesa e o princípio da separação de poderes levam à criação de um contencioso privativo da Administração. Assim é devido à interpretação heterodoxa (contra os princípios liberais) que se faz do princípio da separação de poderes, que vai determinar a criação de uma justiça especial para a Administração, que numa primeira fase nem chega a existir dada a total confusão entre administrar e julgar, “em vez de se considerar que julgar a Administração é ainda administrar e que a jurisdição era o complemento da acção administrativa” (Portalis). Isto significa que o Direito que é produzido nestes tribunais defende a Administração, uma vez que se sentia a necessidade de criar um direito autónomo que a protegesse. Por outro lado, conscientes da experiência anterior, os revolucionários franceses após a conquista do poder, receavam que o controlo da actuação daquela pelos tribunais ordinários pudesse pôr em causa a “nova ordem” estabelecida criando entraves à actuação das autoridades administrativas.
Assim a criação do Contencioso administrativo demonstra a tendência francesa para a concentração e a centralização do poder. No entanto, e apesar da mudança de poder, cria-se em França, num momento posterior, um Conselho de Estado – órgão fiscalizador da Administração criado por Napoleão entre 1799 e 1822 –, adoptando uma velha instituição do Antigo Regime. Mantém-se também a situação que se encontrava anteriormente em relação ao poder judicial.

Este é o período da Administração-juiz, realizada em nome dos princípios do liberalismo político, embora esta tenha origem não só nestes como também na longa experiência do Antigo Regime. Segundo Santamaria Pastor “o Estado liberal é um autêntico herdeiro – a benefício do inventário – do monarca absoluto, como se manifesta, sobretudo, no âmbito da Administração Pública: o Direito Administrativo será o ponto de convergência das técnicas de acção absolutistas com as exigências de liberdade e garantia que a grande revolução traz”. Considera-se que a administração aqui levada a cabo era agressiva, determinada pelas circunstâncias da época e simultaneamente por factores de momentos anteriores, como era o caso do Conselho de Estado, órgão resistente do Antigo Regime que fiscalizava a Administração. Este modelo de administração é um modelo centrado, procedendo-se a um sistema de controlo dessa, que desaparece no Estado social.

De acordo com Freitas do Amaral, o acto administrativo e o contencioso administrativo estão ligados, uma vez que a principal função prática do conceito de acto administrativo é, num primeiro momento, a delimitação dos comportamentos da Administração susceptíveis de recurso contencioso para fins de garantia dos particulares, servindo de garantia da Administração: o particular vê-se confrontado com uma situação de redução, uma vez que não possui direitos perante a Administração, sendo considerado como objecto do poder (neste período os particulares não são considerados como sujeitos de direito); num segundo momento - de plena jurisdicionalização do contencioso -  o acto administrativo passa a definir as actuações da Administração Pública sujeitas ao controlo dos tribunais administrativos, funcionando ao serviço das garantias dos particular, considerando-se aqui como protector das garantias dos particulares, encarnando a lógica da noção liberal do Estado. O acto desempenhava uma função dupla: por um lado era privilégio da Administração, manifestação do poder administrativo no caso concreto, susceptível de ser imposto pela via coactiva aos particulares e, por outro lado, era instrumento de garantia dos particulares pois abre-lhes acesso à Justiça. Neste último caso o particular recorrente exerceria um direito à legalidade cuja titularidade seria da colectividade, o que mostra que o titular não era sujeito de direitos perante a Administração.

Desta forma, neste período, o acto administrativo é o centro das concepções do Direito Administrativo, materializando-se no poder autoritário de decidir, nos privilégios exorbitantes que concedia (defendido em França por Maurice Hauriou) e, ainda, no poder coactivo para os executar (defendido na Alemanha por Otto Mayer). Estes dois autores são os grandes pais do Direito Administrativo, que partilham um elemento nas suas teorias: a ideia do acto administrativo como exercício do poder administrativo. Hauriou, em França, vai defender o acto como produtor de efeitos jurídicos aplicáveis de forma autoritária, realçando o aspecto voluntário da conduta. Já Otto Mayer realiza um acto de defesa do direito aplicável a um particular, pelo que o aspecto voluntário carece de autonomia. Este autor vai introduzir e teorizar o conceito de acto administrativo no século XIX na Alemanha, onde este terá grande independência em relação à lei e basear-se-á tanto no Direito Administrativo francês como no Direito Civil alemão.

O acto administrativo trata-se de uma cristalização jurídica dos pressupostos ideológicos do Estado liberal, adequando-se perfeitamente às circunstâncias histórico-políticas do ambiente em que foi criado e teorizado. Com a alteração deste ambiente na passagem para o Estado social, no qual desaparece o modelo liberal de Estado, desmorona-se o sistema político em que assentava, perde a flexibilidade e adequação para a resolução dos novos problemas com que se defrontava a moderna Administração, o acto administrativo vai, como refere Vasco Pereira da Silva, adquirir rigidez “post mortem”.

O acto administrativo entra em declínio na transição para o século XIX, o tempo do Estado Social, na qual a Administração passa de agressiva a prestadora, o que leva à necessidade de repensá-la. Deixa de existir uma visão actocêntrica, característica da época anterior, na qual o acto administrativo era a forma de actuação única para esta se dissipar no meio de outras formas de actuar que ganham força. É necessário agora acompanhar o acto no processo administrativo, e este transforma-se: cria direitos e não é precisa a sua aplicação coactiva. A Administração descentraliza-se, já não depende do Governo devido às novas entidades que estão lado a lado com este na execução do Direito Administrativo.

Na actualidade o acto administrativo não deixa de existir, apenas se tornou numa forma de actuar que perdeu a sua importância em relação a outras que emergiram durante o Estado Social. Nos anos 70 do século XX há uma nova dimensão de Administração, a infraestrutural, havendo uma produção de actos administrativos em massa que afectavam os particulares, visto estes terem eficácia em relação a terceiros. Este continua a ser praticado, embora já não nos mesmos moldes em que o era no período liberal, uma vez que se trata de uma cristalização da conjuntura histórica, política, económica e social que nesse período se vivia e específicamente para o qual ele é criado.
Hoje, a principal função prática do conceito de acto administrativo é a de delimitar comportamentos susceptíveis de fiscalização contenciosa, o que consta do art. 268º/4 CRP – o acto administrativo aparece aqui a delimitar os comportamentos da Administração que são susceptíveis de recurso contencioso para fins de garantia dos particulares, o que mostra que, apesar das "complicações" este sobreviveu!



Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva – “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”
Diogo Freitas do Amaral – “Curso de Direito Administrativo tomo II”


Sara Oliveira, nº21870


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