domingo, 16 de dezembro de 2012

A Privatização da Administração Pública: Quais os Limites? Parte 2


Quando o tema em discussão se trata de limites à privatização, é habitual partir-se do pressuposto de um Estado que preserva para si uma posição de relevo no contexto social e económico nacional. Por isso, falar de limites à privatização é falar de intervenção do Estado na economia.
A privatização, tal como exposto na Parte 1, é hoje um fenómeno em voga por grande parte das nações mundiais com vista à melhoria da eficiência nos serviços ou actividades estatais, desafogo da máquina estatal (claramente o caso de Portugal), entre outras justificativas várias já analisadas.
É verdade que a redução da presença do Estado, em várias áreas, tem se relevado positiva de tal modo que ficou patente que há inúmeros sectores em que a iniciativa privada opera melhor do que o poder público. No entanto, o sucesso de vários movimentos privatizantes não pode representar a subestimação do papel do Estado tanto na sociedade em geral como na economia em particular.
O papel essencial do Estado, até mesmo nas economias que consagram o princípio da subsidariedade económica, faz da Administração Pública um elemento imprescindível em qualquer sociedade civilizada.O modelo contemporâneo de Estado, muito embora tenha claras insuficiências na Administração estatal hipertrofiada, não pode desconsiderar a necessidade de um poder público presente, seja por meio de actuação própria ou por actividades reguladoras no plano da economia.
O presente artigo, que parte do postulado de que o Estado Social de Direito pode e deve limitar a privatização, tem aqui um sentido de se determinar até que ponto se pode ir no processo privatizador. Importa saber se a Administração Pública pode ser totalmente privatizada ou se há uma linha separadora. Havendo tal linha, é preciso saber como traça-la: com que fundamentos?
Por ser um artigo e não um trabalho de investigação, fiz uma selecção de normas e princípios que representam estes ditos limites à privatização da Administração Pública.
A Constituição da República Portuguesa possui várias normas consagradoras da existência de limitações ao abstencionismo do Estado tanto na área social como na economia.
Além dos princípios, como é o caso do princípio que consagra a cláusula do bem-estar, que por si já tem um significado inquestionável no que se refere à importância da presença e da actuação do poder estatal, é possível ainda perceber que há um sistema de normas na CRP que garantem uma posição fundamental, mas não necessariamente de peso excessivo, do poder público no funcionamento do Estado de Direito.
O artigo 9º, por exemplo, assegura de forma clara e taxativa a promoção permanente do bem-estar e da qualidade de vida do povo enquanto tarefa fundamental do Estado. É a confirmação jurídica da cláusula do bem-estar.
Dentro tantos dispositivos que poderiam ser citados, é importante fazer menção daqueles que dão um contributo de visão sistemático da CRP, como é o caso dos artigos:
38/6º (sector público de comunicação): "A estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do sector público devem salvaguardar a sua independência perante o Governo, a Administração e os demais poderes públicos, bem como assegurar a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião."

artigo 63/2º (papel do Estado na segurança social): "Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.
"
artigo 64/2º (saúde como direito universal): "O direito à protecção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.
"

artigo 74/2º b) (sistema público de educação): "Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar."

artigo 75/1º (rede pública de ensino): "O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população.
"

artigo 80º b) (coexistência dos três sectores da economia): "Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção"

artigo 80º d) (propriedade pública dos meios de produção): "Propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo"

artigo 82/1 (garantia da coexistência dos três sectores):"É garantida a coexistência de três sectores de propriedade dos meios de produção.
"

artigo 84º (bens do domínio público):"
1. Pertencem ao domínio público:

a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos;
b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário;
c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção;
d) As estradas;
e) As linhas férreas nacionais;
f) Outros bens como tal classificados por lei.

2. A lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.

artigo 86/3º (vedação legal de actividade da iniciativa privada em determinados sectores básicos): "A lei pode definir sectores básicos nos quais seja vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza.
"


Logicamente é de observar que nem todos os dispositivos super citados representam limitação directa à privatização da Administração Pública. No entanto, a função reflexa de algumas normas e princípios não lhes tira o peso ou a importância - é o caso, por exemplo, do princípio da apropriação pública dos meios de produção, que pode até ser qualificado como um limite negativo ao avanço do processo de privatização, ou como bem define o Professor Paulo Otero, seria uma "condição resolutiva de base constitucional" suportada pelo sector empresarial privado.

Tendo em conta as normas enunciados, podemos tirar conclusão a parta da Parte 1 e 2 desta artigo: Na CRP encontramos tanto fundamentos como limites para o fenómeno da privatização. É necessário um juízo de valor e contrabalançar os dos pólos quando procedendo à privatização dos bens públicos que está hoje na ordem do dia.
É por isso bastante pertinente a posição de José Pedro Fernandes, no sentido de que "É, pois, de concluir, que os factores determinantes da classificação das coisas como públicas são, para a generalidade dos países, ou a sua importância vital para a sobrevivência nacional ou para a sua relevância especial e insubstituível para a definição da própria identidade cultural".
Dito isto, e face aos acontecimentos diários, esperamos prudência.

Principal bibliografia consultada:
Paulo Otero "Legalidade e Administração Pública"
Jorge Reis Novais "Contributo para uma Teoria do Estado de Direito"
Vasco da Silva "Em busca do acto administrativo perdido"José de Melo Alexandrino " Direitos Fundamentais - Introdução Geral"

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