As parcerias entre entidades públicas e entidades privadas são uma realidade que hoje em dia é praticada muito regularmente no nosso país e que tem feito correr tinta de diversa doutrina, principalmente na questão da fuga para o Direito Privado, tão corrente no Direito Administrativo de hoje.
Estas inserem-se no contexto da organização da Administração Pública, mais concretamente, na Administração Estadual Indirecta.
A Administração Indirecta, segundo o Freitas do Amaral, define-se como a "actividade administrativa do Estado realizada, para a prossecução dos fins deste, por entidades públicas dotadas de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa e financeira". Assim sendo, é possível dizer que a Administração Indirecta ainda tem algo a ver com o Estado mas apenas de forma indirecta, havendo por parte deste uma superintendência e tutela em relação a estas entidades (art. 199- d) CRP). O que é que isto significa? O Estado prossegue diversos fins e muitos deles se fossem prosseguidos directamente por este não o seriam de forma tão eficaz. O que acontece é que as entidades dentro desta Administração não deixam de prosseguir os fins do Estado, apenas os prosseguem com maior autonomia em relação a este, de forma (pretende-se) mais eficaz. Estas não deixam de ser consideradas como "serviços do Estado, mas não dependem directamente das ordens do Governo, estão autonomizados, têm os seus próprios orgãos de direcção e gestão" (Freitas do Amaral). Serão então, de forma subjectiva, o conjunto das entidades públicas que desenvolvem, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa, ou administrativa e financeira, uma actividade administrativa destinada à realização dos fins do Estado. Em suma, continuamos perante uma actividade administrativa, que prossegue os interesses do Estado mas que o faz indirectamente (como se fossem seus), através de entidades destacadas pelo Estado para tal. Prosseguem-se estes fins, segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, por duas formas: Administração Indirecta sob forma pública, através dos institutos públicos (serviços públicos personalizados e fundações públicas) e das entidades públicas empresariais e da Administração Indirecta sob forma privada, através das empresas públicas, SA e das Associações e Fundações, que apesar da forma atribuída pelo legislador o seu regime jurídico é Direito Administrativo (aproxima-se da Administração Indirecta sob forma pública).
Dentro da Administração Indirecta incluem-se as parcerias público-privadas, reguladas pelo Decreto-Lei 86/2003 de 26 de Abril, que vem ser alterado pelo Decreto-Lei 141/2006, primeira alteração ao anterior, revendo o regime jurídico aplicável à intervenção do Estado na definição, concepção, preparação, concurso, adjudicação, alteração, fiscalização e acompanhamento global de parcerias público-privadas. Albuquerque de Sousa define-as como "contrato duradouro entre parceiros privados e um parceiro público com vista à satisfação de uma necessidade colectiva em que o financiamento e o risco cabem essencialmente ao privado. São parceiros públicos o Estado e as entidades públicas estaduais, os fundos e serviços autónomos e as entidades públicas empresariais. São criadas principalmente nos sectores do fornecimento de energia eléctrica, da distribuição de água, das subvenções e nas intervenções no mercado. Umas das mais conhecidas parcerias público-privadas é a das Estradas de Portugal, e o instrumento jurídico subjacente às parcerias mais frequentemente utilizado em Portugal é o contrato de concessão de serviço público, envolvendo, na maioria dos casos, a concepção, financiamento, construção, manutenção e exploração das infra-estruturas destinadas à satisfação da necessidade pública em causa, como aqui acontece. São ainda descritas no Decreto-Lei 86/2003:
Artigo 2º, nº1:
contrato ou a união de contratos, por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obrigam, de forma duradoura, perante um parceiro público, a assegurar o desenvolvimento de uma actividade tendente à satisfação de uma necessidade colectiva, e em que o financiamento e a responsabilidade pelo investimento e pela exploração incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado.
As formas de actuação público-privadas têm como objectivo prosseguir, de forma imediata, específicos fins administrativos públicos, sendo considerados como negócios jurídico-administrativos mas construídos da perspectiva do Direito Privado. Surge aqui uma "Administração soberana mas não autoritária" (Maria João Estorninho), uma vez que esta procede a uma actividade fiscal meramente formal, e não de conteúdo. Desta forma devem ser tomadas em consideração as vinculações jurídico-públicas, mais concretamente, os direito fundamentais. Esta prossecução imediata das tarefas públicas através de entidades privadas é vista como a fuga para o Direito Privado, numa tentativa da Administração escapar ao âmbito das vinculações jurídico-públicas.
Impõem-se então uma breve distinção entre Direito Público e Privado. Segundo Oliveira Ascensão, que recorre ao critério da posição dos sujeitos, o Direito Público será "o que constitui e organiza o Estado e outros entes públicos e regula a sua actividade como entidade dotada de ius imperii" e, por outro lado, o Direito Privado será "o que regula as situações em que os sujeitos estão em situação de paridade". Esta é a divisão tradicional mas que tanto Oliveira Ascensão, como Marcelo Rebelo de Sousa e grande parte da doutrina, consideram que esta divisão não significa contradição. Aliás, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, as influências entre ambos tendem até a acentuar-se e defende ainda que, cada vez mais, nos deparamos com um fenómeno de compenetração entre os dois ramos de Direito. Aqui surge a questão da fuga para o Direito Privado e, podendo estar ligada com esta, o surgimento de uma actividade administrativa de Direito Privado.
A Administração arroga para si o uso do Direito Privado em diversas situações, como negócios auxiliares que desempenham uma função meramente instrumental na actuação da Administração (contratos de aquisição de material ou
de arrendamento de imóveis), gestão de empresas públicas no mercado da
concorrência (função tipicamente privada) e no exercício de funções materialmente administrativas (satisfação directa de necessidades colectivas, isto é, das
atribuições das pessoas colectivas). Assim é por o Direito Privado trazer várias vantagens para a satisfação dos fins do Estado: celeridade; flexibilidade; eficácia e transparência; subtração a determinados controlos burocráticos, financeiros e contabilísticos; atenuação da tutela e razões fiscais.
O problema acima descrito da fuga para o Direito Privado no sentido da Administração ter a possibilidade de se furtar ao cumprimento das suas obrigações
estabelecidas pelo direito público é, segundo Maria João Estorninho, um problema actualmente superado com as cautelas já estabelecidas de o direito privado ser combinado com os limites e as regalias do direito público: o direito privado administrativo. Esta autora acrescenta que não se pode falar ainda numa "teoria geral da actividade da administração de direito privado" assim como também não se pode falar de uma verdadeira "fuga", uma vez que a doutrina tem consciência dessa dela e pretende evitá-la, permitindo-se a actuação segundo o Direito Privado mas obrigando-se, a par de normas jurídico-privadas, a ter em consideração certas normas e princípios do Direito Público. Exemplos disso são o princípio da liberdade de escolha das formas de organização e o princípio da legalidade.
A admissão de escolha das formas de organização explica a criação de pessoas jurídicas de Direito Privado e a participação em sociedades jurídico-privadas no âmbito da liberdade de organização das próprias entidades públicas, que não necessita de fundamento legal expresso desde que escolhidas as formas gerais previstas no Direito Privado, que seriam o contrato jurídico-privado, acto administrativo e contrato jurídico-privado. Reforça-se a ideia de que o recurso ao Privado facilita o cumprimento eficiente das tarefas da Administração, tendo em conta que estas formas jurídico-privadas são meios e não uma regra, pois as pessoas colectivas são organizações teleologicamente delimitadas para a realização de fins concretos. Insere-se, neste contexto, o princípio da aderência ao fim pois aquilo que a ordem jurídica pretende é que a entidade administrativa proceda a uma satisfação formal do interesse público pondo em acção os meios que lhe concede, os poderes jurídicos (Rogério Soares). Segundo Sérvulo Correia "apenas é necessário que as virtualidades técnico-jurídicas desses institutos também possam ser postas ao serviço das atribuições da pessoa colectiva pública e que as situações jurídicas emergentes do seu emprego não se choquem com os princípios a que inescapavelmente se encontram sujeitas as pessoas colectivas públicas enquanto tais". Neste contexto é o princípio da especialidade, consagrado no art. 12/2 CRP e no art.160/1 CC, que vai assegurar a ligação entre a legalidade e a autonomia privada.
Quanto à legalidade, esta traduz-se na subordinação da actividade administrativa à lei e ao Direito, aplicando-se aqui o art.266/2 CRP mas de forma mais abrangente. Esta só se descobre nas vinculações concretas que existem e é só nessas situações que a juridicidade se revela.
Ligada muitas vezes à fuga para o Direito Privado está a privatização que pode muitas vezes coincidir com a primeira, apesar de a primeira estar mais ligada à actividade administrativa em si e a última à vinculação/regulação dessa actividade.
Cada vez mais surgem parcerias entre o Público e o Privado pelas mais diversas razões, seja para que o Estado veja um seu fim eficazmente cumprido ou para fugir às vinculações jurídico-públicas. A verdade é que o Direito Privado contém algumas áreas nas quais certas matérias se encontram muito melhor regulamentadas do que no Público e também mais completas, o que facilita a acção. Para além disto o Estado tem funções que considera mais importantes e que por essa mesma razão reserva para a sua prossecução directa, delegando outras matérias através da superintendência e da tutela das entidades a quem as delega. A interpenetração entre ambos os ramos do Direito é inevitável assim como a fuga para o Direito Privado, uma vez que o Direito Público cada vez mais se privatiza ao introduzir esquemas conceptuais do Direito Privado, ao mesmo tempo que este último se publiciza, por força do alargamento dos fins do Estado e da sua intervenção na vida económica, social e cultural. As parcerias público-privadas são um exemplo da utilização do Privado pelo Estado e de fuga deste ao Público, de forma a facilitar a sua tarefa e as pesadas vinculações que o Direito Público muitas vezes impõe. Resta dizer que a questão das parcerias público-privadas e da fuga para o Direito Privado são um assunto actual que está em plena evolução, uma vez que nos encontramos numa área instável e ainda em construção. Estas encontram-se ligadas. Contudo estão-no num mau sentido, isto porque são calamitosas para as contas públicas. Em sentido técnico existe uma ligação entre elas, porque existe um privado que exerce uma função administrativa, embora na prática essa ligação se apresente como "perversa" porque os contratos deveriam ser renegociados para que houvesse uma maior equilíbrio.
Bibliografia
Maria João Estorninho - "Fuga para o Direito Privado"
Diogo Freitas do Amaral - "Curso de Direito Administrativo"
Marcelo Rebelo de Sousa - "Lições de Direito Administrativo"
Albuquerque Sousa - "Noções de Direito Administrativo"
Oliveira Ascensão - "O Direito: Introdução e Teoria Geral"
Diplomas Legais
Constituição de República Portuguesa
Lei Orgânica do Ministério da Finanças e Administração Pública
Lei Orgânica do Ministério da Economia e do Emprego
Sara Oliveira, nº21870
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