O Sector Empresarial do Estado: Relevância da Administração Estadual Indirecta e o Lucro como critério de extinção das Empresas Públicas I Parte.
É apanágio dos tempos que correm a ideia, muito correcta só por si, de
redimensionar o Estado, de o tornar mais leve, mais ágil, mais eficaz, mais
minimalista. Expressão recorrente é aquela que nos leva a pensar num
consultório nas Avenidas Novas de Lisboa, com uma sala de espera muito branca e
minimalista, com uma secretária que chama o paciente seguinte com uma frase
minimalista. A expressão de que falo sai da boca do médico, também ele
minimalista: “Em toda a minha carreira de cirurgia plástica nunca vi nada
igual, você é obeso! Infelizmente, vamos ter de cortar essas gorduras, Sr.
Estado”.
Este é o lugar comum que ecoa pelas avenidas, oriundo do hemiciclo do povo
para as bocas dos cidadãos; é um coloquialismo que semeia a concórdia e faz com
que todos acenem em sinal de aprovação.
Porém este facto, aparentemente fácil de digerir, levanta inúmeras questões
que se prendem, desde logo, com a função mais primária do Estado, na sua
actividade como prestador de bens e serviços essenciais.
Este cepticismo é tão característico hoje, como era há já vinte anos, como
testemunha o professor, de Coimbra, COUTINHO DE ABREU, lançando o mote para a
exposição que se segue.
Desde há muitos anos, que o Sector Empresarial do Estado é olhado como
sendo um dos causadores maiores do abismo financeiro em que, mais uma vez, nos
encontramos. Parece aliás que o nosso país aprecia a adrenalina que a constante
fuga ao credor provoca…
As EP’s (Empresas Públicas) são ineficientes, dão prejuízo quando na
realidade deveriam, dar lucro. Este é um argumento que parece encher o palato
de muitos “opinion makers” da nossa praça. No entanto, antes de dar respostas
às críticas e tomar posição na questão é necessário desconstruir uma série de
conceitos de grande importância. É preciso relacionar os fins do Estado e a
existência de uma Administração Estadual Indirecta; analisar o novo regime do
Sector Empresarial do Estado; definir juridicamente Empresa Pública e Empresa
Participada contrapondo com a noção de Empresa em sentido mais lato; por fim
cabe responder à questão que mais paixão recolhe: o lucro como característica
indissociável do conceito de Empresa Pública.
Ora, o Estado é uma construção fictícia, não tem existência natural, não passando
de um exercício jurídico que se foi complexificando ao longo dos séculos. Foi
criado com o propósito de concentrar o poder, numa lógica de balizamento das
liberdades individuais que teimavam em chocar desastrosamente com as liberdades
de cada qual. Todavia, esta máquina de controlo não é toda poderosa, nem existe
só para assegurar a manutenção da espécie. Ele depende do soberano delegador de
poder, que espera dele a realização de atribuições pertencentes ab initio ao Povo. Estas atribuições,
que estão originariamente na esfera do Estado, encontram-se fortificadas pela noção
de Estado Social da Constituição de 76.
Esta construção fictícia está, como qualquer pessoa colectiva ou singular,
sujeita ao direito e à lei, como adianta o Professor FREITAS DO AMARAL: “(…) as
atribuições (do Estado) têm de resultar expressamente da lei”. A lei é a fonte
de onde se extraem os fins do Estado, é ela que lhes atribui legitimidade por
que fruto do poder popular pela força do voto e eleição.
Estes fins são múltiplos, demasiados para nomear. Ainda assim, houve quem os
tentasse limitar a uma classificação (BERNARD GOURNAY). Exercícios classificatórios
à parte, há um local que nos permite aceder, de forma mais ou menos sistemática,
a estes fins: a Constituição da República Portuguesa. Lá, mas não só,
encontramos as atribuições do Estado, nomeadamente em relação aos seus deveres
na prossecução da satisfação óptima dos direitos e cidadãos e, mesmo, numa II Parte algo que muito nos interessa: A Constituição Económica.
Aquela, abre com um artigo 80º que determina os princípios fundamentais da
organização económica. Salienta-se, desde logo, a coexistência entre um sector
público, privado, cooperativo e social de propriedade dos meios de produção, na
alínea b). O que este artigo permite é a criação de uma cláusula “garantística”
(nas palavras de RUI DA FONSECA), não limitando a existência de outros sectores
ou sub-sectores mas obrigando à existência destes. Fica, também, patente que o
Estado ou outras pessoas públicas controlarão certos meios de produção, que são
depois elencados no nº1 do artigo 84º;o nº2 do referido artigo dispõe, ainda,
que a lei definirá o que mais será domínio público dentro da Administração Pública.
De especial interesse é ainda o artigo 82º que define o sector público,
dispondo que ele é constituído por todos os meios de produção cuja propriedade
e gestão pertença ao Estado ou a outras entidades públicas. Por fim, resta
fazer uma pequena viagem até ao artigo 81º que define as incumbências
prioritárias do Estado, devendo este: desde promover o bem-estar social e
económico e a qualidade de vida das pessoas, a justiça social, a defender a
correcção das desigualdades causadas pela insularidade e até assegurar a
criação de uma política científica e tecnológica favorável ao desenvolvimento
do país.
Este périplo pela Lei Fundamental serviu, essencialmente, para quê? Para
percebermos que há um sector público, que tem um domínio público, ou seja,
sectores da nossa vida em sociedade que, apenas, à Administração Pública dizem
respeito e que esta certas incumbências, às quais não pode escapar, que têm de
ser concretizadas ou pelo Estado ou por outra pessoa colectiva pública.
É para a parte final da afirmação precedente que cabe olhar agora: outras
pessoas colectivas públicas. É aqui que entra a Administração Estadual
Indirecta.
Como vimos na análise anterior, algo que está também patente na obra da
Professora MARIA JOÃO ESTORNINHO, ou em FREITAS DO AMARAL, as atribuições do
Estado têm vindo a diversificar-se e a crescer muito. Se a maior parte dessas
atribuições são prosseguidas de forma imediata e directa, isto é, pela pessoa
colectiva Estado, nomeadamente, pelo Governo, há outras que não o são; há ainda
aquelas que são imediatamente prosseguidas pela pessoa colectiva já mencionada
mas de forma mediata, ou seja, por outro órgão dessa mesma pessoa moral. No
entanto, aquilo que nos interessa é sair fora do Estado, ir mais além e
encontrar outras pessoas colectivas que são dele autónomas, quer financeira,
quer administrativa quer juridicamente. Surge a Administração Estadual
Indirecta, composta por pessoas colectivas diversas, com personalidade jurídica
distinta e que prosseguem não fins seus mas antes do Estado. Este definirá o
escopo de actuação destas, riscando a giz os seus limites que serão, em bom
rigor, balizados pela noção de interesse público, conceito que o colega PAULO
RAMOS mostrou ser difícil de determinar. Assim, os fins do Estado seriam
prosseguidos fora da sua esfera jurídica por pessoas diferentes limitadas ab initio, mas com a liberdade de traçar
o seu caminho.
Como mostra a Professora MARIA JOÃO ESTORNINHO, a razão de ser desta nova Administração
Pública é um esforço de agilização do sistema, de desburocratização e descentralização
das atribuições do Estado. Este tinha cada vez mais problemas em concretizar os
seus próprios fins pela complexidade e particularidade técnica que estas, com o
tempo, haviam adquirido. A Administração Central estagnara e era preciso
responder à expansão cultural, social, técnica e económica das atribuições do
Estado. Criou-se assim um sector que era capaz de melhor assegurar o
cumprimento de uma verdadeira Cláusula de Bem-Estar, explorada por SOFIA TOMÉ D’ALTE,
presente em artigos como o 2º, 9º ou 81º da CRP.
Este Bem-Estar é cada vez mais económico, precisando deste para atingir
concretização, nomeadamente, do empresarial. Numa lógica concorrencial, em que
pautam um sector público e privado, o Estado tem de se adaptar e de crescer. De
facto, é o que vai fazer, nomeadamente pela figura da Empresa Pública. Esta é uma
figura com especial relevância após a 2ª Guerra Mundial, crescendo por toda a
Europa em reconstrução. O Estado procura cada vez mais uma intervenção forte no
jogo económico e o controlo de sectores chave da economia concorrencial. Em
Portugal isto vai ter especial relevância no pós 25 de Abril de 74 com a febre
revolucionária que culminou em vários raides de nacionalizações e com a constitucionalização
da cláusula de irreversibilidade das mesmas (mais tarde retirada). Gradualmente
o Estado vai retrocedendo no seu dirigismo económico com uma política de
privatizações levada a cabo nos anos 90 que culminou em 1999 com a aprovação e publicação
de um novo regime para o Sector Empresarial do Estado (SEE), através do
Decreto-Lei nº558/99 de 17 de Dezembro, revogando o antigo regime de 1976.
Veio assim a criar-se um SEE mais abrangente e mais complexo que não se
limita a empresas públicas sob forma pública mas que cria uma bipartição nova,
estabelecendo novos limites jurídicos.
Teremos, então, dois elementos autóctones ao regime: as Empresas Públicas (nos
termos do artigo 3º) e as Empresas Participadas. É isto que determina o nº 1 do
artigo 2º do referido decreto. Este vem criar dois critérios distintos: 1º-
Presente no nº 2 do artigo 2º que explicita o conceito de Empresa Participada;
2º- Presente no artigo 3º/1, definindo Empresa Pública. O mesmo artigo remete
ainda para o Capítulo III, no nº 2 do artigo 3º, onde se enuncia não uma
terceira categoria mas, talvez, uma sub-categoria das já mencionadas Empresas
Públicas. São as chamadas EPE’s, Entidades Públicas Empresariais, pessoas
colectivas de direito público, com natureza empresarial e criadas pelo Estado.
Surge-nos um problema que é enunciado quer por COUTINHO DE ABREU, quer por
SOFIA TOMÉ D’ALTE, que se reconduz a: definir empresa pública. O artigo 3º,
para o qual remete o nº 1 do artigo 2º, dispõe que esta seria: aquela “constituída
nos termos da lei comercial” (primeira parte). Aqui vemos um claro acrescento
às empresas públicas de base institucional do Decreto-Lei nº260/76. É, pois, necessário
tentar desmanchar este pequeno novelo deixado pelo legislador: “criadas pela
lei comercial”. Partir-se-ia, como SOFIA D’ALTE, que estas se limitariam às
Sociedades Comerciais cujo regime é perfeitamente estranho ao Direito Público,
sendo estas inseridas num regime originário do CSC. Assim, ficaria de fora do
regime do SEE tudo aquilo que não assumisse a forma de Sociedade Comercial ou
EPE; nomeadamente, as Sociedades Civis sob Forma Comercial, as Cooperativas ou
as empresas públicas detidas Fundações ou Associações Públicas! Outro problema
prende-se com as formalidades de criação destas “empresas públicas”, já que,
para tal, bastaria a elaboração de um contrato de sociedade, segundo o artigo
9º, por escritura pública, artigo 7º/2, sendo esta registada, artigo 5º, todos
do CSC. Excluir-se-iam as pessoas colectivas criadas por decreto-lei? É a
conclusão a que a autora citada, sendo perceptível a questão colocada, pela
indecisão quanto ao modo de criação destas entidades empresariais, que não é
homogéneo ao longo do decreto-lei.
Apontado que foi este problema, cabe lançar o mote para a publicação
seguinte que incidirá sobre os pontos que não couberam nesta exposição. Ai proceder-se-à a uma conceptualização mais sucinta da noção de Empresa: contrapondo a Empresa
Pública com a Empresa Privada; seguindo-se a questão à qual se queria
responder: O Lucro como característica essencial para a subsistência das
Empresas Públicas numa lógica de mercado concorrencial e de concretização óptima
das atribuições do Estado.
Ricardo Afonso Lira Gonçalves
nº 21964, sub-turma 1, Turma A.
Bibliografia:
COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, Definição de empresa pública, Coimbra, 1990 (separata do vol. XXXIV do “Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”);
FREITAS DO AMARAL,Diogo, Curso de Direito Administrativo Volume I, Almedina, 2ª Edição, 2000;
D'ALTE, Sofia, A Nova Configuração do Sector Empresarial Do Estado e a Empresarialização dos Serviços Públicos, Almedina, 1ª Edição, 2007;
RAIMUNDO, Miguel Assis, As Empresas Públicas nos Tribunais Administrativos. Contibuto para a Delimitação do Âmbito da Jurisdição Administrativa face às Entidades Instrumentais Empresariais da Administração Pública, Almedina, 1ª Edição, 2007;
ESTORNINHO, Maria João, A Fuga para o Direito Privado, Almedina, Colecção Teses de Doutoramento, 2ª Reimpressão, 2009.
DA FONSECA, Rui Guerra, Comentário à Constituição Portuguesa, II - Organização Económica (artigos 80.º a 107.º), coord. Paulo Otero, Almedina, Coimbra, 2008.
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