terça-feira, 20 de novembro de 2012


O Sector Empresarial do Estado: Relevância da Administração Estadual Indirecta e o Lucro como critério de extinção das Empresas Públicas I Parte.

É apanágio dos tempos que correm a ideia, muito correcta só por si, de redimensionar o Estado, de o tornar mais leve, mais ágil, mais eficaz, mais minimalista. Expressão recorrente é aquela que nos leva a pensar num consultório nas Avenidas Novas de Lisboa, com uma sala de espera muito branca e minimalista, com uma secretária que chama o paciente seguinte com uma frase minimalista. A expressão de que falo sai da boca do médico, também ele minimalista: “Em toda a minha carreira de cirurgia plástica nunca vi nada igual, você é obeso! Infelizmente, vamos ter de cortar essas gorduras, Sr. Estado”.
Este é o lugar comum que ecoa pelas avenidas, oriundo do hemiciclo do povo para as bocas dos cidadãos; é um coloquialismo que semeia a concórdia e faz com que todos acenem em sinal de aprovação.
Porém este facto, aparentemente fácil de digerir, levanta inúmeras questões que se prendem, desde logo, com a função mais primária do Estado, na sua actividade como prestador de bens e serviços essenciais.
Este cepticismo é tão característico hoje, como era há já vinte anos, como testemunha o professor, de Coimbra, COUTINHO DE ABREU, lançando o mote para a exposição que se segue.
Desde há muitos anos, que o Sector Empresarial do Estado é olhado como sendo um dos causadores maiores do abismo financeiro em que, mais uma vez, nos encontramos. Parece aliás que o nosso país aprecia a adrenalina que a constante fuga ao credor provoca…
As EP’s (Empresas Públicas) são ineficientes, dão prejuízo quando na realidade deveriam, dar lucro. Este é um argumento que parece encher o palato de muitos “opinion makers” da nossa praça. No entanto, antes de dar respostas às críticas e tomar posição na questão é necessário desconstruir uma série de conceitos de grande importância. É preciso relacionar os fins do Estado e a existência de uma Administração Estadual Indirecta; analisar o novo regime do Sector Empresarial do Estado; definir juridicamente Empresa Pública e Empresa Participada contrapondo com a noção de Empresa em sentido mais lato; por fim cabe responder à questão que mais paixão recolhe: o lucro como característica indissociável do conceito de Empresa Pública.
Ora, o Estado é uma construção fictícia, não tem existência natural, não passando de um exercício jurídico que se foi complexificando ao longo dos séculos. Foi criado com o propósito de concentrar o poder, numa lógica de balizamento das liberdades individuais que teimavam em chocar desastrosamente com as liberdades de cada qual. Todavia, esta máquina de controlo não é toda poderosa, nem existe só para assegurar a manutenção da espécie. Ele depende do soberano delegador de poder, que espera dele a realização de atribuições pertencentes ab initio ao Povo. Estas atribuições, que estão originariamente na esfera do Estado, encontram-se fortificadas pela noção de Estado Social da Constituição de 76.
Esta construção fictícia está, como qualquer pessoa colectiva ou singular, sujeita ao direito e à lei, como adianta o Professor FREITAS DO AMARAL: “(…) as atribuições (do Estado) têm de resultar expressamente da lei”. A lei é a fonte de onde se extraem os fins do Estado, é ela que lhes atribui legitimidade por que fruto do poder popular pela força do voto e eleição.
Estes fins são múltiplos, demasiados para nomear. Ainda assim, houve quem os tentasse limitar a uma classificação (BERNARD GOURNAY). Exercícios classificatórios à parte, há um local que nos permite aceder, de forma mais ou menos sistemática, a estes fins: a Constituição da República Portuguesa. Lá, mas não só, encontramos as atribuições do Estado, nomeadamente em relação aos seus deveres na prossecução da satisfação óptima dos direitos e cidadãos e, mesmo, numa II Parte algo que muito nos interessa: A Constituição Económica.
Aquela, abre com um artigo 80º que determina os princípios fundamentais da organização económica. Salienta-se, desde logo, a coexistência entre um sector público, privado, cooperativo e social de propriedade dos meios de produção, na alínea b). O que este artigo permite é a criação de uma cláusula “garantística” (nas palavras de RUI DA FONSECA), não limitando a existência de outros sectores ou sub-sectores mas obrigando à existência destes. Fica, também, patente que o Estado ou outras pessoas públicas controlarão certos meios de produção, que são depois elencados no nº1 do artigo 84º;o nº2 do referido artigo dispõe, ainda, que a lei definirá o que mais será domínio público dentro da Administração Pública. De especial interesse é ainda o artigo 82º que define o sector público, dispondo que ele é constituído por todos os meios de produção cuja propriedade e gestão pertença ao Estado ou a outras entidades públicas. Por fim, resta fazer uma pequena viagem até ao artigo 81º que define as incumbências prioritárias do Estado, devendo este: desde promover o bem-estar social e económico e a qualidade de vida das pessoas, a justiça social, a defender a correcção das desigualdades causadas pela insularidade e até assegurar a criação de uma política científica e tecnológica favorável ao desenvolvimento do país.
Este périplo pela Lei Fundamental serviu, essencialmente, para quê? Para percebermos que há um sector público, que tem um domínio público, ou seja, sectores da nossa vida em sociedade que, apenas, à Administração Pública dizem respeito e que esta certas incumbências, às quais não pode escapar, que têm de ser concretizadas ou pelo Estado ou por outra pessoa colectiva pública.
É para a parte final da afirmação precedente que cabe olhar agora: outras pessoas colectivas públicas. É aqui que entra a Administração Estadual Indirecta.
Como vimos na análise anterior, algo que está também patente na obra da Professora MARIA JOÃO ESTORNINHO, ou em FREITAS DO AMARAL, as atribuições do Estado têm vindo a diversificar-se e a crescer muito. Se a maior parte dessas atribuições são prosseguidas de forma imediata e directa, isto é, pela pessoa colectiva Estado, nomeadamente, pelo Governo, há outras que não o são; há ainda aquelas que são imediatamente prosseguidas pela pessoa colectiva já mencionada mas de forma mediata, ou seja, por outro órgão dessa mesma pessoa moral. No entanto, aquilo que nos interessa é sair fora do Estado, ir mais além e encontrar outras pessoas colectivas que são dele autónomas, quer financeira, quer administrativa quer juridicamente. Surge a Administração Estadual Indirecta, composta por pessoas colectivas diversas, com personalidade jurídica distinta e que prosseguem não fins seus mas antes do Estado. Este definirá o escopo de actuação destas, riscando a giz os seus limites que serão, em bom rigor, balizados pela noção de interesse público, conceito que o colega PAULO RAMOS mostrou ser difícil de determinar. Assim, os fins do Estado seriam prosseguidos fora da sua esfera jurídica por pessoas diferentes limitadas ab initio, mas com a liberdade de traçar o seu caminho.
Como mostra a Professora MARIA JOÃO ESTORNINHO, a razão de ser desta nova Administração Pública é um esforço de agilização do sistema, de desburocratização e descentralização das atribuições do Estado. Este tinha cada vez mais problemas em concretizar os seus próprios fins pela complexidade e particularidade técnica que estas, com o tempo, haviam adquirido. A Administração Central estagnara e era preciso responder à expansão cultural, social, técnica e económica das atribuições do Estado. Criou-se assim um sector que era capaz de melhor assegurar o cumprimento de uma verdadeira Cláusula de Bem-Estar, explorada por SOFIA TOMÉ D’ALTE, presente em artigos como o 2º, 9º ou 81º da CRP.
Este Bem-Estar é cada vez mais económico, precisando deste para atingir concretização, nomeadamente, do empresarial. Numa lógica concorrencial, em que pautam um sector público e privado, o Estado tem de se adaptar e de crescer. De facto, é o que vai fazer, nomeadamente pela figura da Empresa Pública. Esta é uma figura com especial relevância após a 2ª Guerra Mundial, crescendo por toda a Europa em reconstrução. O Estado procura cada vez mais uma intervenção forte no jogo económico e o controlo de sectores chave da economia concorrencial. Em Portugal isto vai ter especial relevância no pós 25 de Abril de 74 com a febre revolucionária que culminou em vários raides de nacionalizações e com a constitucionalização da cláusula de irreversibilidade das mesmas (mais tarde retirada). Gradualmente o Estado vai retrocedendo no seu dirigismo económico com uma política de privatizações levada a cabo nos anos 90 que culminou em 1999 com a aprovação e publicação de um novo regime para o Sector Empresarial do Estado (SEE), através do Decreto-Lei nº558/99 de 17 de Dezembro, revogando o antigo regime de 1976.
Veio assim a criar-se um SEE mais abrangente e mais complexo que não se limita a empresas públicas sob forma pública mas que cria uma bipartição nova, estabelecendo novos limites jurídicos.
Teremos, então, dois elementos autóctones ao regime: as Empresas Públicas (nos termos do artigo 3º) e as Empresas Participadas. É isto que determina o nº 1 do artigo 2º do referido decreto. Este vem criar dois critérios distintos: 1º- Presente no nº 2 do artigo 2º que explicita o conceito de Empresa Participada; 2º- Presente no artigo 3º/1, definindo Empresa Pública. O mesmo artigo remete ainda para o Capítulo III, no nº 2 do artigo 3º, onde se enuncia não uma terceira categoria mas, talvez, uma sub-categoria das já mencionadas Empresas Públicas. São as chamadas EPE’s, Entidades Públicas Empresariais, pessoas colectivas de direito público, com natureza empresarial e criadas pelo Estado.
Surge-nos um problema que é enunciado quer por COUTINHO DE ABREU, quer por SOFIA TOMÉ D’ALTE, que se reconduz a: definir empresa pública. O artigo 3º, para o qual remete o nº 1 do artigo 2º, dispõe que esta seria: aquela “constituída nos termos da lei comercial” (primeira parte). Aqui vemos um claro acrescento às empresas públicas de base institucional do Decreto-Lei nº260/76. É, pois, necessário tentar desmanchar este pequeno novelo deixado pelo legislador: “criadas pela lei comercial”. Partir-se-ia, como SOFIA D’ALTE, que estas se limitariam às Sociedades Comerciais cujo regime é perfeitamente estranho ao Direito Público, sendo estas inseridas num regime originário do CSC. Assim, ficaria de fora do regime do SEE tudo aquilo que não assumisse a forma de Sociedade Comercial ou EPE; nomeadamente, as Sociedades Civis sob Forma Comercial, as Cooperativas ou as empresas públicas detidas Fundações ou Associações Públicas! Outro problema prende-se com as formalidades de criação destas “empresas públicas”, já que, para tal, bastaria a elaboração de um contrato de sociedade, segundo o artigo 9º, por escritura pública, artigo 7º/2, sendo esta registada, artigo 5º, todos do CSC. Excluir-se-iam as pessoas colectivas criadas por decreto-lei? É a conclusão a que a autora citada, sendo perceptível a questão colocada, pela indecisão quanto ao modo de criação destas entidades empresariais, que não é homogéneo ao longo do decreto-lei.
Apontado que foi este problema, cabe lançar o mote para a publicação seguinte que incidirá sobre os pontos que não couberam nesta exposição. Ai proceder-se-à a uma conceptualização mais sucinta da noção de Empresa: contrapondo a Empresa Pública com a Empresa Privada; seguindo-se a questão à qual se queria responder: O Lucro como característica essencial para a subsistência das Empresas Públicas numa lógica de mercado concorrencial e de concretização óptima das atribuições do Estado.
Ricardo Afonso Lira Gonçalves
nº 21964, sub-turma 1, Turma A.

Bibliografia:
COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, Definição de empresa pública, Coimbra, 1990 (separata do vol. XXXIV do “Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra”);
FREITAS DO AMARAL,Diogo, Curso de Direito Administrativo Volume I, Almedina, 2ª Edição, 2000;
D'ALTE, Sofia, A Nova Configuração do Sector Empresarial Do Estado e a Empresarialização dos Serviços Públicos, Almedina, 1ª Edição, 2007;
RAIMUNDO, Miguel Assis, As Empresas Públicas nos Tribunais Administrativos. Contibuto para a Delimitação do Âmbito da Jurisdição Administrativa face às Entidades Instrumentais Empresariais da Administração Pública, Almedina, 1ª Edição, 2007;
         ESTORNINHO, Maria João, A Fuga para o Direito Privado, Almedina, Colecção Teses de Doutoramento, 2ª Reimpressão, 2009.
         DA FONSECA, Rui Guerra, Comentário à Constituição Portuguesa, II - Organização Económica (artigos 80.º a 107.º), coord. Paulo Otero, Almedina, Coimbra, 2008. 



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