Como
conceito indeterminado que levanta barreiras de abstracção numa vasta amplitude
definitória, o interesse público é o critério central da acção do Estado. Mas
foquemo-nos apenas na acção administrativa em si. A indeterminabilidade do conceito
não implica que este não seja passível de divisão em categorias primárias e
secundárias, atendendo a critérios de primazia. É aqui que podemos
falar em interesse público global, nacional, regional ou local. Num plano mais generalizado
e teórico, levar em conta a prossecução de interesses dotados de
imprescindibilidade mais ampla é reconhecidamente mais importante que tomar em
consideração os mais pequenos, apesar de, inoportunamente, violar os mais
basilares princípios constitucionais (caso da tentativa por parte do Ministério
da Saúde de retirar o helicóptero do INEM de Macedo de Cavaleiros alegando
“interesse público”, que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela veio a
rejeitar declarando ilegalidade). No entanto, em sede de prevalência dos
princípios que se subsumem à Administração Pública, esta
acolhe todos os interesses recorrendo à sua própria descentralização, no cumprimento do mandato constitucional e de efectivação do princípio da subsidiariedade e igualdade. Isto aumenta
a disponibilidade à realização da vontade geral através de uma atenção mais
especializada e diminui a dispersão do interesse, através do seu enquadramento
categórico: Os particulares podem ter necessidades iguais a nível nacional, mas a
forma de obter a sua satisfação depende de factores mais específicos e a nível
local. Pode-se dizer, então, que a função administrativa age através de um
registo de proporcionalidade inversa para com os administrados (maior
disponibilidade à concretização do interesse, menor amplitude do mesmo), o que
resulta amiúde numa larga eficácia do processo administrativo.
Em boa
verdade, a descentralização e a desconcentração dos poderes administrativos
permitiram, como já enunciado, uma maior flexibilização no agere das entidades competentes. Todavia, não nos esqueçamos do
carreirismo pelo qual muitas administrações locais se pautam, colocando os
interesses próprios (ou partidários) à frente dos interesses relevantes, pelo
que a conduta legislativa actua no sentido de desprover a administração local
de amplos poderes ou financiamento abastado. Em Portugal, onde o
desenvolvimento se deu, por razões primariamente históricas, pelo litoral
atlântico, não faria qualquer sentido atribuir fartas verbas a localidades
interiores sem qualquer crédito saliente na prossecução do interesse público e
princípios periféricos que lhe subjazem. Com efeito, a chamada “gestão privada”
não se subtrai dos enigmas da “gestão pública”, mesmo adaptando as bases e
estruturas-quadro das pessoas colectivas integrantes da Administração Pública a
uma componente privada mais forte no sentido de flexibilizar a burocracia
inerente à orgânica processual administrativa. Noutro sentido mas de igual
importância no âmbito da Administração indirecta, a chamada “fuga para o Direito
Privado”, preconizada em Portugal pela primeira vez e com grande acolhimento
por MARIA JOÃO ESTORNINHO, tem vindo a ser apresentada como uma solução para os
problemas que envolvem a gestão da coisa pública. As denominadas “pessoas
colectivas privadas” que, mesmo prosseguindo o interesse público, não se
inserem na Administração Pública pela sua natureza jurídico-privada, são
discriminadas a um reduzido ofício, considerando-se apenas “instituições de
exercício privado de funções públicas”. Mesmo o sector público (presente no
artigo 82º da CRP) é passível de gestão privada através de privatizações, e de
reforço da actividade regulativa do Estado por parte das “entidades públicas
reguladoras” (como a ANACOM, CMVM, ou Brisa) . No entanto e por vezes, acontece que se acaba por colocar
serviços públicos sob a égide de uma organização empresarial, muitas vezes sem
qualquer cabimento pela natureza do serviço em si. Como forma de atenuar os
efeitos da gestão pública, criaram-se PPPs (Parcerias
Publico-Privadas) para, tecnicamente, melhor identificar as necessidades e os
recursos em sede de eficiência logística, tornando a Administração Pública mais
dinâmica e optimizando a qualidade dos serviços prestados.
Por outro
lado, nem sempre um foco mais esmiuçado implica a materialização do interesse
público. Como função integrada no aparelho estatal, a função administrativa
sujeita-se a relações de interdependência com as funções legislativa, executiva
e judicial, nomeadamente pelo facto de estar integrada nas mesmas com uma
margem de razoável autonomia. Sem dúvida que a separação de poderes foi a
vitória mais iluminada do Estado Social de Direito, dado que constituiu o ponto
de viragem para uma nova era de democratização, mas ainda hoje podemos
encontrar resquícios de centralização nos mecanismos do Poder. Um deles é a
insusceptibilidade de interposição de recurso a determinados actos, elencados
no artigo 4º/1/e) do ETAF, mesmo que ilegais, na medida em que estão excluídos
da jurisdição administrativa e, desde logo, não são passíveis de recurso
contencioso de anulação. Mesmo não tendo substracto administrativo, podem
igualmente afectar o processo de prossecução dos interesses do Povo.
Este factor
aponta desde já uma noção importante: De todos as funções do Estado, a
Administração Pública é aquela que melhor resulta na intimidade com os cidadãos.
A questão,
todavia, subsiste: Como classificar o que é interesse público e o que não o é?
Para isso, o
Estado desenhou um sistema triangular de triagem que abrange, dentro das
fronteiras normativas, um processo de ponderação de interesses. Recorre-se,
para tal, a 3 entidades:
a)
O Legislador;
b)
A
Administração Pública;
c)
O Juiz.
O Legislador
actua à base da Lei: Cabe aos intérpretes aplicá-la ao caso concreto da melhor
forma que os saberes do Direito o permitam, novamente sem prejuízo das garantias
e direitos dos particulares. A Lei, no entanto, continua a ser o instrumento de
efectivação do Poder sem a qual a sociedade nunca se poderia organizar e interagir
de forma ordenada, dotada dos contornes de uma comunidade civilizada. A máxima “Dura
Lex, sed Lex”, aplicada à esfera administrativa, não torna o complexo normativo
mais ou menos flexível; antes actua como balizador no intuito de não deixar
escapar o verdadeiro sentido do critério, realizando a transição interpretativa
e executória da norma do ser para o dever ser. O “legislador
Todo-Poderoso”, como lhe apelida PAULO OTERO, acaba sempre delinear as margens
do interesse público em inúmeros diplomas, seja essa “expressividade legal”
concretizada directa (enunciado expresso) ou indirectamente (subentendido no
texto legal), com muleta constitucional.
Por outro
lado, a Administração Pública ocupa-se da do acto administrativo per se e actua
como titular dos interesses a satisfazer.
A conexão Legislador-Administração alberga um
vasto repertório de doutrina, mas numa visão mais breve, vamos apenas
cingir-nos ao princípio da legalidade administrativa: A Administração Pública e
os seus agentes somente podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites
por ela estabelecidos. Quer isto dizer que a actuação
administrativa circunscreve-se única e simplesmente à redoma da legalidade e
nos termos da sua imposição. Como já referido, o princípio da legalidade
administrativa é um reflexo objectivista constante do artigo 266º/2 CRP mas não
só. A conciliação feita entre ambas as ópticas está dispersa na Constituição,
fruto da consolidação ideológica e democrática da Revolução de 25 de Abril de
1974. De forma mais profunda, este princípio estabelece-se hoc sensu no Código do Processo Administrativo, no seu artigo 3º
/1: “Os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e
ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em
conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes foram conferidos”.
A relação, na sua essência, é simbiótica: A Administração não pode agir fora do
acordo com a Lei e a Lei não pode ter efeito na matéria fora da finalidade que
lhe esteja incumbida pela Administração. Em acréscimo, a Constituição protege a
Administração garantindo à sua actividade a reserva de lei especial em termos
processuais (267º/5 CRP) e a proximidade com os cidadãos “nas decisões ou
deliberações que lhes disserem respeito”.
O Juíz surge
como o ente que age de forma discricionária e específica: Cabe-lhe o papel de
mediador entre o administrado e a Administração. Neste contexto, é necessário
relembrar que não se pode (nem se deve) confundir “interesse do administrado”
com “interesse da Administração”, pois nem sempre estes coincidem. O Juiz,
então, actua num espírito de legalidade e imparcialidade, sujeito também à Lei
e ao Direito.
Hoje, o Juiz
trabalha muito mais próximo dos interesses da colectividade do que qualquer
outro órgão administrativo. No entanto, só a reforma do Contencioso
Administrativo através da aprovação do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais e do Código de Processo dos Tribunais Administrativos
é que veio a garantir a independência dos juízes administrativos e fiscais
(artigo 3º ETAF e artigo 216º CRP, com a revisão constitucional de 1989), atribuindo-lhes
“competência para administrar a justiça em nome do povo” (1º/1 ETAF, 212º/3
CRP). Desta forma e com uma nova revisão constitucional em 1997,
os juízes administrativos começam a trabalhar menos à sombra dos meios
processuais (causadores de elevada burocratização), gozando em sentido inverso
de mais poderes sob a égide de uma jurisdição plena em razão de protecção de
interesses dos particulares, que se tornou o princípio basilar do processo
administrativo.
- SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobrea supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais.
- REBELO DE SOUSA, Marcelo. Lições de Direito Administrativo.
- FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo - Volume I.
DIPLOMAS
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