Tendo
o Contencioso Administrativo uma importância incontornável na
estruturação do Direito Administrativo – tendo-lhe, inclusive, dado origem -, pretendeu-se fazer uma breve abordagem ao
desenvolvimento do mesmo, desde o seu nascimento no final do século XVIII até aos dias de hoje.
Estado
Liberal
A
Revolução francesa constituiu a primeira tentativa de implementação
do modelo do Estado Liberal na Europa continental. As raízes
teóricas deste modelo de organização do poder encontram a sua
origem histórica no próprio conceito de Estado, inventado por
Nicolau Maquiavel no século XVI, como forma de concentrar e unificar
o poder na figura do Príncipe. Contra a dispersão e personalização
do poder – típica do feudalismo -, a este mesmo conceito será
associada a noção de soberania, sistematicamente teorizada por
Jean Bodin. Soberano, o Estado pretendia concentrar em si todo o
poder da sociedade, enquanto se libertava dos vínculos que o
limitavam à escala internacional (nomeadamente nas suas relações
com o Sumo Pontífice ou com o Sacro Império Romano-Germânico).
De
uma forma sucinta, é possível diferir dois momentos na história do
Estado: no primeiro, assiste-se a uma tentativa de fortalecimento que
passa pela máxima concentração e unificação do poder na sua
figura; no segundo, assiste-se a uma divisão desse mesmo poder e ao
estabelecimento de uma relação de liberdade com o homem.
Hobbes
e Rousseau teorizaram o elemento democrático do Estado,
conferindo-lhe um fundamento de legitimidade. Com base num pacto
social, o Estado acabava por se encontrar fundamentado na vontade das
pessoas que o constituíam. Posteriormente, o Estado
transformar-se-ia numa entidade a se, que poderia tanto
assumir a imagem do Leviathan ou de uma realidade abstracta
que se manifestaria através da vontade geral.
Locke
e Montesquieu teorizaram o elemento liberal do Estado, defendendo que
este se deveria auto-limitar, protegendo assim a liberdade
individual. Como tal, a democracia deixa de ser o pecado original do
Estado para se fundir com a sua essência.
Ao
Estado referir-se-ão todas as funções realizadas pelos poderes
políticos. Assim, legislar, administrar e julgar não passam de atributos
diferentes de um mesmo Estado, mesmo quando se encontram atribuídos
a poderes diferentes e autónomos.
Montesquieu
considera que existem em qualquer Estado três espécies de poderes:
o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do
direito público e o poder executivo daquelas que dependem do direito
civil. Para si, o poder judicial aparece limitado à função de
dirimir os litígios nas relações inter-privadas. Pelo terceiro
poder, o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos
particulares.
É
este entendimento da separação de poderes que vai encontrar a sua
concretização na Revolução Francesa e que vai ter consequências
quanto ao modo de conceber o controlo da Administração pelos
tribunais. Enquanto que, em Inglaterra, o princípio da separação
de poderes implicava necessariamente a existência de um poder
judicial autónomo dos demais, cabendo aos tribunais ordinários
tanto a resolução dos litígios entre os particulares, como entre
os particulares e as entidades públicas, em França, o poder
judicial ficará limitado aos conflitos inter-privados,
encontrando-se os tribunais ordinários impedidos de conhecer os
litígios entre os particulares e a Administração.
Assim,
em nome de uma «interpretação heterodoxa», a legislação
revolucionária vem proibir os tribunais ordinários de interferirem
na esfera da Administração activa – vedando-lhes, inclusive, o
conhecimento dos litígios entre esta e os particulares -, originando uma separação da função administrativa da judiciária e uma
inequívoca demarcação do contencioso administrativo relativamente
ao poder judicial.
A
consequente indiferenciação entre as funções de administrar e
julgar culminou com o aperfeiçoamento do sistema do
Administrador-Juíz, que se deu sob a égide de Napoleão Bonaparte
através da criação, por parte deste, do Conselho de Estado. Tal
órgão visava a criação de um corpo meio-administrativo,
meio-judiciário - ou seja, de um corpo em que se registasse uma
fusão harmoniosa entre o espírito da Administração e o sentido
da Justiça. Neste contexto, a distinção entre órgãos da
Administração activa e consultiva era incontornável. A estes
ficava atribuída a tarefa de julgar os litígios entre os
particulares e a Administração, embora apenas pudessem emitir
pareceres sujeitos à homologação do Chefe de Estado.
Estado
Social
Nos
finais do século XIX e inícios do século XX, com a questão social
e com as cíclicas crises do capitalismo, torna-se necessário que o
Estado proceda à criação de legislação e de instituições que
permitam a garantia de condições mínimas de sobrevivência a todos
os cidadãos e que, de forma a corrigir as disfunções do mercado,
intervenha activamente na economia. Cai então por terra a defesa da
não-intervenção do Estado na sociedade, e é exactamente neste
âmbito que surge a utilização da receita Keynesiana, que terá
aplicação em quase todos os países europeus após a Segunda Grande
Guerra e que fará com que o Estado deixe de ser um mero consumidor
para se tornar, ele próprio, num produtor de bens e serviços.
Com
a transição para o Estado Social, a Administração - até aqui
vista como agressiva para com os direitos dos particulares – passa
a ser entendida como o principal instrumento de realização de novas
funções e de satisfação das novas necessidades - agora atribuídas
ao Estado -, tornando-se Prestativa ou Constitutiva. Essa sua nova
função tornar-se-ia na principal característica do Estado Social.
Este novo modelo de Estado vem exigir uma Administração pública
que saiba adequar o seu fim constitucionalmente estabelecido de modo
eficiente e autónomo, sem se libertar dos vínculos requeridos pelo
princípio da legalidade da Administração.
Simultaneamente,
dá-se a democratização do poder, que deixa de ser um privilégio
exclusivo do Estado e passa a ser repartido e compartilhado pela
sociedade. Tal fenómeno vem determinar uma mudança da estrutura
organizativa da Administração pública. Por um lado, os serviços
anteriormente dispostos de forma piramidal, passam a ser organizados como
uma rede. Por outro, assiste-se a uma crescente predominância das
actividades de serviço público, de empresa e de financiamento que
têm , como principal característica, o facto de serem desenvolvidas
em função da colectividade - e não do centro. Dá-se, por
conseguinte, uma aproximação do sistema de organização
administrativa do já existente nos países anglo-saxónicos, onde a
noção de centro é, também, inexistente.
Em
comparação com a fase precedente, é notório que o Estado perdeu o
monopólio do poder e, prova disso, é a crescente contratualização
da actuação do Estado, em geral, e da Administração, em particular.
Quanto à actuação desta, assiste-se sobretudo a uma crescente
utilização de meios privados por parte da Administração, a um uso
mais frequente de meios normativos na actividade administrativa e a uma
relativa desvalorização da noção de acto administrativo.
Consequentemente, a jurisdição administrativa torna-se no principal
instrumento de defesa dos particulares face à Administração e uma
defesa que tem como objectivo assegurar a plena satisfação das suas
pretensões. As principais alterações apresentadas passam pela
jurisdicionalização plena das instituições de fiscalização
administrativa, pelo aperfeiçoamento do contencioso da anulação e
pelo aparecimento de novos meios processuais no contencioso
administrativo.
Estado
Pós-Social
A
partir da segunda metade da década de 70 do século XX, agudiza-se
uma acesa discussão em torno da crise do modelo de Estado Social,
cujas causas se encontravam na ineficiência económica do
intervencionismo do Estado, no crescimento das contribuições dos
cidadãos – que originou a desconfiança daqueles face à actuação
estadual -, na quebra da imparcialidade do Estado, originada pela sua
perda de verticalidade e pela sua crescente mistura com a sociedade,
e no gradual alheamento do cidadão face à coisa pública. De uma
situação de dependência e confiança, passou-se a uma situação
de alienação e desconfiança face ao Estado e à sua actuação.
É
neste âmbito que se dá a ascensão do modelo de Estado Pós-Social,
em desenvolvimento até aos dias de hoje. Os traços gerais que o
caracterizam passam, em primeiro lugar, pela interrogação da
direcção que o Estado e as funções que desempenha estão a tomar, o que comporta uma revisão do seu papel e um consequente redimensionamento da extensão do seu
aparelho. Esse redimensionamento revelar-se-á mais ou menos radical,
consoante a força das perspectivas socialistas ou liberais que o
fundamentem. Para além disso, pesa a revalorização da sociedade
civil - cuja tendência para o destaque do papel dos indivíduos,
das comunidades e dos organismos intermédios não pode deixar de ser
referida -, assim como a defesa da sua participação no
processo de tomada de decisões, quer à escala política, quer
administrativa.
Na
medida em que o novo modelo põe em causa o modo de entender o Estado
e a posição do cidadão face ao mesmo, é possível afirmar que
estamos perante uma situação de «retorno ao jurídico». Assim, nas
palavras de Vasco Pereira da Silva, «o direito público, em geral, e
o direito administrativo, em particular, tornam-se verdadeiras
disciplinas de ponta». Segundo a perspectiva subjectivista defendida
pelo mesmo autor, o direito público não deve ser mais o direito do Estado
e dos seus órgãos, mas o dos indivíduos e dos seus direitos, assim
como o direito administrativo não deve ser mais o direito da
Administração, mas sim o dos direitos individuais nas relações
administrativas.
Como
tal, enquanto instrumentos de defesa dos particulares, os tribunais
têm uma importância fundamental, sendo chamados a refundar o
direito administrativo enquanto direito dos particulares face à
Administração. Tal já se faz sentir, através da crescente noção
de direitos fundamentais, como forma de melhorar a tutela jurídica
das situações individuais, no modo de entender a posição do
particular na acção administrativa e na necessidade constante de
aperfeiçoar os institutos do contencioso administrativo, com o fim
de reforçar a protecção dos particulares e de controlar a
Administração de forma mais eficiente.
Diogo
Ilyas Baig
Nº
21955
Bibliografia
-
PEREIRA DA SILVA, Vasco. Para um Contencioso Administrativo
dos Particulares - Esboço de uma teoria Subjectivista e do recurso
Directo de Anulação, Almedina, Coimbra, 1989 (1ª reimpressão
1997)
-
CASSESE, Sabino. Le Trasformazioni del Diritto Amministrativo
dal XIX al XXI Secolo, in «Rivista Timestrale di Diritto
Pubblico», n.º1, 2002
- REBELO DE SOUSA, Marcelo. Direito Administrativo Geral, Vol. I, 1ª ed., Lisboa, 2004
- FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2006
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- FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3ª ed., Coimbra, 2006
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