segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Evolução do Contencioso Administrativo: Do Estado Liberal ao Pós-Social


Tendo o Contencioso Administrativo uma importância incontornável na estruturação do Direito Administrativo – tendo-lhe, inclusive, dado origem -, pretendeu-se fazer uma breve abordagem ao desenvolvimento do mesmo, desde o seu nascimento no final do século XVIII até aos dias de hoje.

Estado Liberal
A Revolução francesa constituiu a primeira tentativa de implementação do modelo do Estado Liberal na Europa continental. As raízes teóricas deste modelo de organização do poder encontram a sua origem histórica no próprio conceito de Estado, inventado por Nicolau Maquiavel no século XVI, como forma de concentrar e unificar o poder na figura do Príncipe. Contra a dispersão e personalização do poder – típica do feudalismo -, a este mesmo conceito será associada a noção de soberania, sistematicamente teorizada por Jean Bodin. Soberano, o Estado pretendia concentrar em si todo o poder da sociedade, enquanto se libertava dos vínculos que o limitavam à escala internacional (nomeadamente nas suas relações com o Sumo Pontífice ou com o Sacro Império Romano-Germânico).
De uma forma sucinta, é possível diferir dois momentos na história do Estado: no primeiro, assiste-se a uma tentativa de fortalecimento que passa pela máxima concentração e unificação do poder na sua figura; no segundo, assiste-se a uma divisão desse mesmo poder e ao estabelecimento de uma relação de liberdade com o homem.
Hobbes e Rousseau teorizaram o elemento democrático do Estado, conferindo-lhe um fundamento de legitimidade. Com base num pacto social, o Estado acabava por se encontrar fundamentado na vontade das pessoas que o constituíam. Posteriormente, o Estado transformar-se-ia numa entidade a se, que poderia tanto assumir a imagem do Leviathan ou de uma realidade abstracta que se manifestaria através da vontade geral.
Locke e Montesquieu teorizaram o elemento liberal do Estado, defendendo que este se deveria auto-limitar, protegendo assim a liberdade individual. Como tal, a democracia deixa de ser o pecado original do Estado para se fundir com a sua essência.
Ao Estado referir-se-ão todas as funções realizadas pelos poderes políticos. Assim, legislar, administrar e julgar não passam de atributos diferentes de um mesmo Estado, mesmo quando se encontram atribuídos a poderes diferentes e autónomos.
Montesquieu considera que existem em qualquer Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito público e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Para si, o poder judicial aparece limitado à função de dirimir os litígios nas relações inter-privadas. Pelo terceiro poder, o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares.
É este entendimento da separação de poderes que vai encontrar a sua concretização na Revolução Francesa e que vai ter consequências quanto ao modo de conceber o controlo da Administração pelos tribunais. Enquanto que, em Inglaterra, o princípio da separação de poderes implicava necessariamente a existência de um poder judicial autónomo dos demais, cabendo aos tribunais ordinários tanto a resolução dos litígios entre os particulares, como entre os particulares e as entidades públicas, em França, o poder judicial ficará limitado aos conflitos inter-privados, encontrando-se os tribunais ordinários impedidos de conhecer os litígios entre os particulares e a Administração.
Assim, em nome de uma «interpretação heterodoxa», a legislação revolucionária vem proibir os tribunais ordinários de interferirem na esfera da Administração activa – vedando-lhes, inclusive, o conhecimento dos litígios entre esta e os particulares -, originando uma separação da função administrativa da judiciária e uma inequívoca demarcação do contencioso administrativo relativamente ao poder judicial.
A consequente indiferenciação entre as funções de administrar e julgar culminou com o aperfeiçoamento do sistema do Administrador-Juíz, que se deu sob a égide de Napoleão Bonaparte através da criação, por parte deste, do Conselho de Estado. Tal órgão visava a criação de um corpo meio-administrativo, meio-judiciário - ou seja, de um corpo em que se registasse uma fusão harmoniosa entre o espírito da Administração e o sentido da Justiça. Neste contexto, a distinção entre órgãos da Administração activa e consultiva era incontornável. A estes ficava atribuída a tarefa de julgar os litígios entre os particulares e a Administração, embora apenas pudessem emitir pareceres sujeitos à homologação do Chefe de Estado.

Estado Social
Nos finais do século XIX e inícios do século XX, com a questão social e com as cíclicas crises do capitalismo, torna-se necessário que o Estado proceda à criação de legislação e de instituições que permitam a garantia de condições mínimas de sobrevivência a todos os cidadãos e que, de forma a corrigir as disfunções do mercado, intervenha activamente na economia. Cai então por terra a defesa da não-intervenção do Estado na sociedade, e é exactamente neste âmbito que surge a utilização da receita Keynesiana, que terá aplicação em quase todos os países europeus após a Segunda Grande Guerra e que fará com que o Estado deixe de ser um mero consumidor para se tornar, ele próprio, num produtor de bens e serviços.
Com a transição para o Estado Social, a Administração - até aqui vista como agressiva para com os direitos dos particulares – passa a ser entendida como o principal instrumento de realização de novas funções e de satisfação das novas necessidades - agora atribuídas ao Estado -, tornando-se Prestativa ou Constitutiva. Essa sua nova função tornar-se-ia na principal característica do Estado Social. Este novo modelo de Estado vem exigir uma Administração pública que saiba adequar o seu fim constitucionalmente estabelecido de modo eficiente e autónomo, sem se libertar dos vínculos requeridos pelo princípio da legalidade da Administração.
Simultaneamente, dá-se a democratização do poder, que deixa de ser um privilégio exclusivo do Estado e passa a ser repartido e compartilhado pela sociedade. Tal fenómeno vem determinar uma mudança da estrutura organizativa da Administração pública. Por um lado, os serviços anteriormente dispostos de forma piramidal, passam a ser organizados como uma rede. Por outro, assiste-se a uma crescente predominância das actividades de serviço público, de empresa e de financiamento que têm , como principal característica, o facto de serem desenvolvidas em função da colectividade - e não do centro. Dá-se, por conseguinte, uma aproximação do sistema de organização administrativa do já existente nos países anglo-saxónicos, onde a noção de centro é, também, inexistente.
Em comparação com a fase precedente, é notório que o Estado perdeu o monopólio do poder e, prova disso, é a crescente contratualização da actuação do Estado, em geral, e da Administração, em particular. Quanto à actuação desta, assiste-se sobretudo a uma crescente utilização de meios privados por parte da Administração, a um uso mais frequente de meios normativos na actividade administrativa e a uma relativa desvalorização da noção de acto administrativo. Consequentemente, a jurisdição administrativa torna-se no principal instrumento de defesa dos particulares face à Administração e uma defesa que tem como objectivo assegurar a plena satisfação das suas pretensões. As principais alterações apresentadas passam pela jurisdicionalização plena das instituições de fiscalização administrativa, pelo aperfeiçoamento do contencioso da anulação e pelo aparecimento de novos meios processuais no contencioso administrativo.

Estado Pós-Social
A partir da segunda metade da década de 70 do século XX, agudiza-se uma acesa discussão em torno da crise do modelo de Estado Social, cujas causas se encontravam na ineficiência económica do intervencionismo do Estado, no crescimento das contribuições dos cidadãos – que originou a desconfiança daqueles face à actuação estadual -, na quebra da imparcialidade do Estado, originada pela sua perda de verticalidade e pela sua crescente mistura com a sociedade, e no gradual alheamento do cidadão face à coisa pública. De uma situação de dependência e confiança, passou-se a uma situação de alienação e desconfiança face ao Estado e à sua actuação.
É neste âmbito que se dá a ascensão do modelo de Estado Pós-Social, em desenvolvimento até aos dias de hoje. Os traços gerais que o caracterizam passam, em primeiro lugar, pela interrogação da direcção que o Estado e as funções que desempenha estão a tomar, o que comporta uma revisão do seu papel e um consequente redimensionamento da extensão do seu aparelho. Esse redimensionamento revelar-se-á mais ou menos radical, consoante a força das perspectivas socialistas ou liberais que o fundamentem. Para além disso, pesa a revalorização da sociedade civil - cuja tendência para o destaque do papel dos indivíduos, das comunidades e dos organismos intermédios não pode deixar de ser referida -, assim como a defesa da sua participação no processo de tomada de decisões, quer à escala política, quer administrativa.
Na medida em que o novo modelo põe em causa o modo de entender o Estado e a posição do cidadão face ao mesmo, é possível afirmar que estamos perante uma situação de «retorno ao jurídico». Assim, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, «o direito público, em geral, e o direito administrativo, em particular, tornam-se verdadeiras disciplinas de ponta». Segundo a perspectiva subjectivista defendida pelo mesmo autor, o direito público não deve ser mais o direito do Estado e dos seus órgãos, mas o dos indivíduos e dos seus direitos, assim como o direito administrativo não deve ser mais o direito da Administração, mas sim o dos direitos individuais nas relações administrativas.
Como tal, enquanto instrumentos de defesa dos particulares, os tribunais têm uma importância fundamental, sendo chamados a refundar o direito administrativo enquanto direito dos particulares face à Administração. Tal já se faz sentir, através da crescente noção de direitos fundamentais, como forma de melhorar a tutela jurídica das situações individuais, no modo de entender a posição do particular na acção administrativa e na necessidade constante de aperfeiçoar os institutos do contencioso administrativo, com o fim de reforçar a protecção dos particulares e de controlar a Administração de forma mais eficiente.

Diogo Ilyas Baig
Nº 21955

Bibliografia

- PEREIRA DA SILVA, Vasco. Para um Contencioso Administrativo dos Particulares - Esboço de uma teoria Subjectivista e do recurso Directo de Anulação, Almedina, Coimbra, 1989 (1ª reimpressão 1997)
- CASSESE, Sabino. Le Trasformazioni del Diritto Amministrativo dal XIX al XXI Secolo, in «Rivista Timestrale di Diritto Pubblico», n.º1, 2002
- REBELO DE SOUSA, Marcelo. Direito Administrativo GeralVol. I, 1ª ed., Lisboa, 2004
- FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito AdministrativoVol. I, 3ª ed., Coimbra, 2006

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