E se em Lisboa caísse um
míssil proveniente da Coreia do Norte com destino aos Estados Unidos da América
?
Ou se, simplesmente, no concelho X situado no interior Português, ocorrer uma
cheia que danifique infra-estruturas importantes às populações residentes ?
Como resolver as situações ?
Como tratar dos danos e lutar por um rápido retorno à normalidade ? Decerto que
essas serão as prioridades de todos os afectados. É dado garantido que, em
situações de normalidade, a Administração Pública tem legitimidade de acção,
suportada, em primeira instância pela CRP e, em segunda instância pelo CPA.
Mas, como poderá a Administração Pública agir, quando não existem previsões
legais de acção ?
É o
que me proponho a analisar.
Partindo
do artigo 3º/2 do CPA encontramos a figura do estado de necessidade. Facilmente
fazemos as primeiras considerações sobre a mesma. Como sabemos, esta figura
nasceu no seio do direito privado, mas, hoje em dia generalizou-se e está
presente em inúmeros ramos do direito.
Será
importante realizar um sintético estudo sobre o estado de necessidade no direito
civil, para, posteriormente, o contrapormos ao seu “descendente”, o estado de
necessidade administrativo.
No
direito civil, artigo 339º do Código Civil, age em estado de necessidade aquele
que, com o objectivo de remover um perigo actual (1º requisito), que ameace a
pessoa ou património do agente ou de terceiro (2º requisito), provoque danos
manifestamente inferiores aos que seríam causados pelo perigo (3º requisito).
Reunidos estes requisitos, a actuação do agente não será considerada ilícita,
mas, a obrigação de indemnizar aquele que sofre danos nem sempre estará
excluída. Em princípio, aquele que provoque danos, indemniza.
Desta
figura nasceram, nos diversos ramos do direito, figuras muito próximas, como
por exemplo o estado de necessidade no direito penal, o estado de necessidade
em direito constitucional e, a figura em estudo, o estado de necessidade no
direito administrativo.
Antes
de passarmos ao direito administrativo, será importante também, fazer algumas
considerações desta figura no âmbito do direito constitucional, dada a estreita
ligação primeiro, entre os dois ramos de direito (“ o direito administrativo é
direito constitucional concretizado”) e, segundo, entre as duas figuras, o
estado de necessidade constitucional e o estado de necessidade administrativo.
Estamos
agora no coração do direito público, o direito constitucional, e dadas as
imensas especificidades deste, parece concebível imaginar esta figura em
situações de guerra, calamidades públicas, desordens sociais, fenómenos
meteorológicos adversos, e afins... Actuações do poder que pretendam ligar com esta
extraordinariedade de acontecimentos, e que violem direitos subjectivos dos cidadãos
poderão não ser consideradas ilegais, reunidos os pressupostos do estado de necessidade. O
caminho a realizar é o mesmo do direito privado, mas, há que atentar a
especificidades pertinentes: enquanto no direito privado nos centramos na
actuação de um sujeito ou grupo de sujeitos, aqui analisamos a actuação do
Estado sobre os seus cidadãos ( há um maior fosso entre as duas “partes”, que,
para a segurança da parte mais “fraca”, deve ser meticulosamente legitimado.).
O
objectivo do instituto será o de permitir o direito da necessidade. Logo,
vigorando o estado de necessidade, certos comportamentos do poder político que,
em situações de normalidade seriam ilícitos, são considerados lícitos.
Que
razões suficientemente fortes “autorizarão” o poder político a violar a própria
Constituição? Que razões sustentam a existência do artigo 19º CRP ?
A
doutrina considera que os detentores do poder político estão legitimados para
agir em estado de necessidade quando a “alma” do estado está em perigo
e,portanto, em nome da salvaguarda dos princípios basilares do Estado, é
legítimo, em casos, colocar em segundo plano certos direitos fundamentais individuais.
Esta ideia remonta so século XVI.
Em Inglaterra, na corte, foram enunciados do
seguinte modo os poderes do Rei: “ The King of England exercises two powers,
the ordinary and legal and the one royal and absolute”. Os defensores da
existência da figura em questão, adoptam esta teoria como teoria de base,
obviamente transpolada para o Estado de Direito Democrático do século XXI.
Desse modo, nasce da aplicação de um direito aparentemente inconstitucional
mas, dadas as circunstâncias do caso, considerado constitucional, um direito
específico – o direito da necessidade.
Embora
este direito da necessidade seja um direito excepcional apenas aplicado em
circunstâncias anormais, é importante ter em consideração que não se actua nem
à margem do direito nem à margem da Constituição; a nossa CRP prevê tais situações
de excepção no seu artigo 19º. Para além
de tipificar as situações de estado de necessidade admitidas na nossa ordem
jurídica, a CRP também tipifica os fenómenos passíveis de desencadear tais
mecanismos, como forma de garantir a excepcionalidade do seu recurso. A nossa
lei fundamental considera a agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras,
a perturbação da ordem constitucional democrática e a calamidade pública como
únicos fundamentos da activação do mecanismo constitucional em estudo.
Durante
a vigência do direito da necessidade, a que princípios estará o Estado imperativamente obrigado a
obedecer ?
A
doutrina enumera alguns como: o princípio da tipicidade dos pressupostos do
estado de necessidade, o princípio da intangibilidade de certos direitos
fudamentais, o princípio da proporcionalidade, o princípio do controlo da
constitucionalidade do estado de excepção bem como o princípio do controlo
jurisdicional das medidas tomadas.
Sinteticamente
estudado o regime e âmbito do estado de necessidade constitucional cabe fazer
uma pequena apreciação crítica, antes de partir para a análise do estado de
necessidade no direito administrativo.
Como
notámos, o direito da necessidade tem como principal finalidade reger situações
de excepção, tornando, à luz da CRP, lícitas as actuações dos orgãos de
soberania que violem princípios constitucionais. Mas, será realmente muitíssimo
complicado prever todas as situações de excepcionalidade, prever todos os
procedimentos e actuações , como se de situações de normalidade se tratasse.
Isso sería, na minha opinião, uma subversão do objectivo da figura do estado de
necessidade. Há que notar que não é só direito legítimo aquele que é
infimamente positivado, também é direito legítimo aquele baseado em princípios,
valores e bom senso. Portanto, não será correcta a existência de uma margem de
manobra por parte do poder político, para, nestas situações, poderem,
respeitando os princípios basilares do nosso Estado, agir o mais rapida e
eficazmente possível ? Sou da opinião que sim.
Nestas situações considero que a
prevalência da espontaneidade de acção em detrimento da segurança jurídica,
originada pela densa positivação normativa, será o mais benéfico para todo o
Estado. Só esta inversão de hierarquias poderá tornar a acção estatal mais
rápida e eficaz, sem prejuízo de sindicância a posteriori.
No direito
administrativo Português, o estado de necessidade foi, à algumas décadas
teorizado por MARCELLO CAETANO.
Partindo
do princípio da legalidade como princípio estruturante do direito
administrativo nacional, o Professor considerou casos em que : “(...) se opera
à extinção de direitos validamente, apesar de se ter suprimido todo o processo
que a lei reputava essencial para que se produzissem tais efeitos na ordem
jurídica: esses casos são aqueles em que a vida jurídica decorre do estado de
necessidade”. Foi teorizado o estado de necessidade como causa da exclusão da
ilicitude de acções da Administração, à semelhança do que notámos para o estado
de necessidade no direito privado e no direito constitucional.
O
Prof. MARCELLO CAETANO viu tal figura como uma clara preferência do fim a
atingir, urgente e legal, em detrimento dos meios, inadequados e burocráticos
dada a excepcionalidade da situação. Chamou-lhe o "princípio do valor maior do
fim a atingir".
É
agora possível teorizar o estado de necessidade num patamar um pouco diferente
daquele considerado pelos constitucionalistas: não estará (apenas) em causa a
violação da Constituição formal, estará, para além disso, em causa uma colisão
de interesses em que, prevalecerá, momentaneamente, o interesse público. Tal
prevalência dá-se por uma, passo a redundância, legal excepção ao princípio da
legalidade administrativa.
Como
pressupostos desta figura, o Prof. considerava a existência de um perigo
iminente e actual ( 1º pressuposto), a ameaça de interesses colectivos que
importa esconjurar ou atenuar ( 2º pressuposto) e, por fim, a urgência das
medidas a tomar (3º pressuposto).
E,até
onde irá a competência da Administração Pública, agindo em estado de
necessidade?
O Prof. MARCELLO CAETANO apenas previu, que esta, agindo de acordo
com os pressupostos, possa desrespeitar regras procedimentais no exercício das
suas competências. Não se previu uma excepcional competência legislativa
subsidiária, nem a elaboração de actos administrativos violando normas de
competência, nem tão pouco, previu a sujeição das medidas de excepção a um
conjunto de princípios como os teorizados a propósito do estado de necessidade
constitucional.
Não terá sido esta teorização demasiado limitada, dado a génese
da figura?
Haverá alguma influência do período histórico em que o Prof.
teorizou o estado de necessidade administrativo, revelando uma desnecessidade
efectiva em procedimentalizar as situações de excepção? À frente tentaremos
responder a estas perguntas mas, podemos antecipar a ideia subjacente ao
problema muito bem reflectida na frase de MARNOCO E SOUSA: “Se o antigo regime
não conheceu o estado de sítio foi porque não conheceu o estado de liberdade”
Mais
recentemente e, acolhendo os ensinamentos de MARCELLO CAETANO, EHRADT SOARES
teoriza o estado de necessidade, com a interessantíssima particularidade de
prever a assumpção de actividades administrativas por parte dos particulares.
Teorizada
a base deste direito da necessidade, regressamos ao artigo 3º CPA, de onde
partimos. Que ideias retirar?
A
primeira consideração a fazer será que, embora o CPA preveja expressamente a
preterição do procedimento administrativo, quando a Administração Pública aja
em estado de necessidade, considerar-se-ão tais actos válidos, com o suporte
constitucional do artigo 266º/2 CRP.
Outro
sector da doutrina, nomeadamente o Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA, vê consignado,
neste art.3º, o princípio do direito da necessidade da Administração Pública e
considera-o mesmo como a base legitimadora para as actuações da Administração
Pública que não respeitem o procedimento administrativo.
Destas considerações
concluímos que, por força, em primeiro lugar do art.266º CRP e, em segundo
lugar do art.151 CPA, está consagrado que o direito administrativo está vinculado,
em primeiro lugar à CRP e, só depois, à legislação ordinária sobre procedimento.
Logo, parece que a CRP se torna a primeira base legitimadora da existência do
direito da necessidade.
O mesmo artigo 3º CPA não
estabelece os pressupostos a obedecer para a verificação do instituto,mas,
doutrinariamente estão consagrados.
Corresponderão, hoje em dia, aos mesmos
teorizados pelo Prof. MARCELLO CAETANO?
Actualmente aceita-se a
urgência da decisão (1º pressuposto), sendo, de outro modo impossível cumprir
as formalidades procedimentais; a obediência ao princípio da proporcionalidade
(2º pressuposto), como garante que os resultados atingidos são adequados às
circunstâncias.
Numa primeira conclusão,
parece que o sistema de pressupostos é menos completo e diverge do apresentado
pelo Prof. MARCELLO CAETANO. Diverge essencialmente em dois pontos: não prevê um
conjunto de acontecimentos que leve à excepcionalidade da situação mas, por
outro lado, faz uma importante referência ao princípio da proporcionalidade. É
de aplaudir esta referência, tal prova que, mesmo em situações de suspensão da
legalidade ( de um ponto de vista formal), a Administração Pública não está
autorizada a preterir princípios básicos e essenciais do nosso Estado de
Direito. Garante-se o máximo de controlo possível, dada a anormalidade de
circunstâncias.
Embora o CPA não elenque os
acontecimentos que motivarão o estado de necessidade administrativo, como
elenca a CRP, o decreto de lei nº 48.051 de 21 de Novembro de 1967, regula a
responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas públicas por danos
resultantes de actuações em estado de necessidade que, considera como
pressuposto, para além dos demais referidos, o facto de a situação ser motivada
por imperioso interesse público. Deste modo, é visível a aproximação do sistema
actual de pressupostos ao proposto, há décadas, pelo Prof.CAETANO.
Na minha opinião, tal
pressuposto, uma vez que estabelece o ponto de partida para a actuação
administrativa em estado de necessidade, não deve ser desconsiderado, embora,
seja passível de fundamentação a sua presença (implicita) no art.3 do CPA.
Tendo em conta tudo o
considerado, há ainda um reparo a fazer, desta vez pelas vozes dos Profs. MARIA DA GLÓRIA GARCIA e FREITAS DO AMARAL: não haverá que referir excepcionalidade
da situação ?
Como se viu, no direito
constitucional a excepcionalidade é pressuposto da actuação em estado de
necessidade. Os Profs. consideram pertinente estabelecer aqui um paralelo com o
direito constitucional, dada a estreita ligação entre os dois institutos. A
excepcionalidade da situação deverá resultar de um deficiente funcionamento do
aparelho administrativo (normal) em “combater” a situação, justificando a
aplicação do já referido, direito da necessidade.
Embora já explicitado, não é
demais destacar que todo o processo em estudo se desenrola no âmbito da
excepcionalidade. Isto permite destacar o estado de necessidade de figuras
próximas como a urgência; que muito sucintamente pode ser definida como a
actuação da administração resultante de processo especial, previsto
especificamente para ser mais expedito que o normal. Não será correcto
confundir a especialidade deste instituto com a excepcionalidade do estado de necessidade,
estamos em patamares diferentes. O procedimento urgente insere-se ainda dentro
da situação de normalidade, e todo o seu procedimento está previsto. No estado
de necessidade o procedimento não está previsto, é difícil prevê-lo ( pelo
menos, eficazmente para todas as hipotéticas situações excepcionais) e, de
extrema importância, não é do interesse público prevê-lo. Parece-me que o
espírito do instituto tem lutado pela permanência de uma área de maleabilidade,
que não deve nunca ser suprimida.
A maleabilidade acima
referida, na minha opinião, deve ser considerada o núcleo do direito da
necessidade. Desta decorre que o este direito viole normas procedimentais, sem
violar a legalidade do espírito da lei ( há aqui uma aproximação ao estado de
necessidade do direito constitucional). Para além do mais, a maleabilidade em
questão também pode ser apresentada como a causa da divergência de pressupostos
para verificação do instituto, pelos diversos doutrinadores, nomeadamente o
Prof. MARCELLO CAETANO, na questão que, em cima, deixei por responder. Respondo
aqui: Considero que a preocupação do poder político, nos anos 60/70 não sería a
de explorar pouco o instituto como forma de o utilizar conforme o seu proveito
mas, penso que MARCELLO CAETANO considerou este instituto como importantíssimo
para a Ciência Administrativa, dada a sua vocação para ultrapassar, legalmente,
as previsões procedimentais burocráticas, que, em situações de emergência
apenas se revelem prejudicais.
Parece estarmos aqui a
considerar a existência “de dois pesos e duas medidas”, mas, será mesmo esse o
espírito do instituto! Não é demais referir, o instituto do direito da
necessidade tanto no direito civil, como no penal, constitucional ou administrativo
previligia o alcance dos fins pretendidos, sacrificando os meios, caso a
situação de excepcionalidade assim o verifique.
Concluindo e, abstraíndo-nos
um pouco do “mundo jurídico”, se, de facto tivesse caído um míssil
Norte-Coreano em Lisboa, o interesse de todo o povo Português não sería o de
acorrer ao salvamento das vítimas, averiguação dos danos e , reconstrução da
cidade ? E para tal sería mais importante certificarmo-nos que o bombeiro apaga
fogos na área para a qual foi destacado, que a ambulância leve apenas um doente
por maca e que os civis não interfiramm nas tarefas conferidas aos meios de
socorro ou que, ao fim do dia, se conseguiu salvar o maior número de vidas possíveis
?
Bibliografia
CAETANO, MARCELO , Manual de Direito Administrativo
GARCIA, MARIA DA GLÓRIA e FREITAS DO AMARAL, PEDRO, Parecer presente na revista " O Direito" de Abril de 1999.
Afonso Costa Gomes
2ºANO, SUB 1
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