Posição
Subjectivista no Direito Administrativo: a teoria da norma de protecção
Para compreender a posição
subjectivista no Direito Administrativo importa, antes de mais, analisar a
evolução do contencioso administrativo ao longo da História.
O
contencioso administrativo nasce em 1789 com a Revolução Francesa. Nesta
altura, estabelece-se o princípio da separação dos poderes, ao contrário do que
acontecia no período anterior, a Monarquia absoluta, em que o Estado era
absoluto e o poder estava centralizado na pessoa do Rei. Com a separação dos
poderes, o Rei fica com o poder executivo, o Parlamento com o legislativo e os
tribunais com o judicial, triunfando, assim, os ideais do liberalismo.
Nasce
também o princípio da legalidade, que protege os particulares, uma vez que a
Administração está subordinada às leis e não pode fazer nada que desrespeite as
mesmas sem correr o risco de os seus actos serem ilegais.
Todavia,
a separação dos poderes era enganadora. Ela não era total: os tribunais
judiciais não podiam interferir na esfera da Administração, o julgamento dos
litígios era remetido para órgãos administrativos. As garantias dos
particulares contra os abusos da Administração Pública eram efectivadas pelos
tribunais administrativos, sendo que estes só podiam anular o acto ilegal da
Administração.
Nos
finais do século XIX, inícios do século XX, dá-se a transição do Estado Liberal
para o Estado Social. Desta feita, o Estado adquire novas funções. Ao contrário
do Estado Liberal, que era abstencionista, o Estado Social tem uma
administração prestadora. Dá-se uma maior separação dos poderes. O Conselho de
Estado torna-se num verdadeiro tribunal. Contudo, o poder dos juízes continua
limitado, eles continuam a ter somente o poder de anulação.
Contudo,
a partir dos anos 90, os juízes tornam-se num órgão independente e com plenos
poderes em relação à Administração. A protecção dos direitos dos particulares
torna-se efectiva. A subsequente europeização surge através de uma integração
vertical (acção conjugada de órgãos comunitários intensificado pelo
aparecimento de fontes europeias em matéria de contencioso) e de uma integração
horizontal (convergência crescente do contencioso administrativo dos diferentes
países da União Europeia).
Debruçando-nos,
agora, sobre a posição subjectivista em si, interessa referir alguns aspectos
da sua internacionalização por alguns países da Europa.
Em
Itália, os particulares têm vindo a ser considerados titulares de posições
jurídicas substantivas nas relações com a Administração. No entanto, na ordem
jurídica italiana há um aspecto particular que importa acrescentar: há uma
distinção entre direitos subjectivos, neste caso, as posições jurídicas dos
particulares são apreciadas por tribunais comuns, e interesses legítimos, sendo
apreciadas por tribunais administrativos (artigos 24º e 113º da Constituição Italiana).
A distinção feita no artigo 266º, nº1 da Constituição da República Portuguesa
provém do direito italiano.
Em
Espanha, García de Enterría defende a existência de duas modalidades de
direitos subjectivos nas relações jurídicas dos particulares com a Administração:
direitos subjectivos clássicos ou activos
e direitos novos ou reactivos. Estes últimos verificam-se
quando um particular vê-se prejudicado por actuações ilegais da Administração,
adquirindo um direito subjectivo à eliminação dessa actuação ilegal, através da
conjugação dos elementos do prejuízo e da ilegalidade. No artigo 24º da
Constituição Espanhola está consagrada a certeza do particular enquanto parte
no processo.
Em
França, por sua vez, apesar da posição objectivista ter tido aqui origem, a
interpretação das normas e princípios constitucionais feita pelo Conselho
Constitucional também tem fomentado a substantivização da posição dos
particulares face à Administração e o seu reconhecimento como parte.
Por
último, na Alemanha, os indivíduos são titulares de direitos face à
Administração, tendo havido a elaboração da chamada teoria da norma de
protecção, em que o particular é parte e há protecção das posições jurídicas
individuais (artigo 19º, nº4 da Lei Fundamental). O caso alemão teve uma grande
influência no ordenamento português.
Evidentemente,
temos, agora, que nos reconduzir ao caso português. Em Portugal, embora a
Administração estivesse subordinada ao princípio da legalidade e apesar de ser
possível os particulares exigirem à Administração o respeito pelos seus
direitos, através de normas, em causa estavam os interesses dos particulares e
o interesse público da Administração, ou seja, a tendência era para uma posição
objectivista. Contudo, a doutrina evoluiu, sendo que a posição do particular
face à sua relação com a Administração é respeitada. Segundo o Prof. Vasco
Pereira da Silva, tal resulta do facto de vivermos numa República soberana,
baseada na dignidade da pessoa humana, cujos direitos fundamentais vinculam
directamente os poderes públicos, sendo que, actualmente, consagra-se a posição
subjectivista no ordenamento português.
De
facto, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 266º, nº1 consagra
o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares. Este princípio engloba tanto os direitos subjectivos públicos
como os direitos subjectivos privados, devendo-se tal ao facto de o interesse
público dever ser observado de acordo com este mesmo princípio, já que nele se
enquadram tanto os direitos subjectivos públicos como os direitos subjectivos
privados (o interesse público e o respeito pelos direitos dos particulares são
realidades indissociáveis no Estado de Direito).
A
Constituição da República Portuguesa (CRP) equipara os direitos subjectivos e
interesses legalmente protegidos, acima referidos, pois ambos são situações
jurídicas materiais dos indivíduos. Para o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa e o
Prof. André Salgado de Matos, o princípio do respeito pelos direitos e
interesses legalmente protegidos tem relevância a nível da imparcialidade
(impõe que as posições jurídicas sejam ponderadas entre si com os interesses
públicos em presença para a decisão do caso concreto) e a nível da
proporcionalidade (proíbe que como resultado dessa ponderação se adoptem meios
de prossecução do interesse público que lesem de forma inadequada e
desnecessária as posições subjectivas dos particulares).
Através
do princípio em questão verifica-se que não basta o cumprimento da lei para
haver a tutela dos direitos e interesses. São necessários mais mecanismos, os
quais estão predispostos na legislação. Alguns exemplos: art.20º, nº1 da CRP (acesso
ao direito e à tutela jurisdicional efectiva); art.22º da CRP (doutrina e
jurisprudência entendem que a responsabilidade civil vale tanto para Estado
como para entidades públicas); art.268º, nº3, 4 e 5 da CRP (direitos e
garantias dos administrados); art.4º do Código do Procedimento Administrativo –
CPA - (princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos
direitos e interesses dos cidadãos); art.12º do CPA (princípio do acesso à
justiça).
Para
o Prof. Vasco Pereira da Silva, a distinção entre direitos subjectivos e
interesses legalmente protegidos reside não na qualidade, mas na quantidade, a
questão está na aplicabilidade do conteúdo, o qual varia consoante a maior ou
menor amplitude do dever a que a Administração está obrigada perante o
particular.
Percebe-se,
deste modo, que os particulares devem ser vistos como activos colaboradores na
realização dos fins do Estado e do Direito, equipados com poderes jurídicos e
vistos como sujeitos de Direito. O Direito Administrativo deve legitimar a
intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica dos
particulares, pois dá ao particular a possibilidade deste se insurgir face aos
actos da Administração que lesem os seus direitos individuais: o particular
pode dirigir-se aos tribunais administrativos e requerer a anulação de um acto
administrativo lesivo dos seus direitos. A este processo dá-se o nome de recurso de anulação. Relativamente a
este aspecto, resta ainda referir que o Direito Público Subjectivo é essencial
para o Direito Administrativo, pois faz perceber a perspectiva do particular,
relacionando-se com a relação jurídico-administrativa.
Posto
isto, há, finalmente, que referir a posição unitária defendida pelo Prof. Vasco
Pereira da Silva e de matriz alemã: a teoria
da norma de protecção.
Esta
teoria defende a atribuição de direitos aos indivíduos pelo ordenamento, sendo
que esta atribuição deve ser feita de duas maneiras:
a)
Pela atribuição de um direito, ou seja, o
legislador atribui um direito: norma
atributiva de direito ou norma de
autorização;
b)
Pela imposição de um dever, ou seja, o
legislador ordena uma determinada conduta: norma
imperativa, norma obrigando a uma
conduta determinada ou norma criadora
de dever.
Além disso,
para que a norma origine um direito subjectivo, é necessário que preencha três
requisitos:
1) Tenha carácter vinculativo;
2)
Seja decretada a favor de pessoas determinadas
(para a satisfação de interesses individuais e não apenas do interesse público,
sendo que o problema de quem beneficia da norma tem a ver com a interpretação
da norma, que deve ser feita de acordo com os parâmetros da Constituição e que
parte-se do pressuposto que a norma que abrange todos também abrange cada um);
3)
Tenha como resultado a possibilidade de os
particulares poderem recorrer por causa dela (face a um direito lesado, os
particulares podem recorrer aos tribunais administrativos, graças à norma e
exigir deles a conduta devida).
Deve-se ter
ainda em conta que para o Prof. Vasco Pereira da Silva, o indivíduo é titular
de um direito subjectivo relativamente à Administração se de uma norma (visando
interesse público e interesse privado) resultar uma vantagem intencionalmente
concedida ao particular ou a um benefício decorrente de um direito fundamental.
Para o Professor, a teoria da norma de protecção deve ser contemplada no âmbito
dos direitos fundamentais.
Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva “Para um Contencioso Administrativo
dos Particulares (esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de
anulação)”;
Diogo Freitas do Amaral “Curso de Direito Administrativo”
Volume I;
Diogo Freitas do Amaral “Curso de Direito Administrativo”
Volume II;
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos “Direito
Administrativo - Introdução e Princípios Fundamentais”.
Diana Furtado Guerra
Nº 21984
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