sábado, 27 de outubro de 2012


Posição Subjectivista no Direito Administrativo: a teoria da norma de protecção

Para compreender a posição subjectivista no Direito Administrativo importa, antes de mais, analisar a evolução do contencioso administrativo ao longo da História.
          O contencioso administrativo nasce em 1789 com a Revolução Francesa. Nesta altura, estabelece-se o princípio da separação dos poderes, ao contrário do que acontecia no período anterior, a Monarquia absoluta, em que o Estado era absoluto e o poder estava centralizado na pessoa do Rei. Com a separação dos poderes, o Rei fica com o poder executivo, o Parlamento com o legislativo e os tribunais com o judicial, triunfando, assim, os ideais do liberalismo.
                Nasce também o princípio da legalidade, que protege os particulares, uma vez que a Administração está subordinada às leis e não pode fazer nada que desrespeite as mesmas sem correr o risco de os seus actos serem ilegais.
              Todavia, a separação dos poderes era enganadora. Ela não era total: os tribunais judiciais não podiam interferir na esfera da Administração, o julgamento dos litígios era remetido para órgãos administrativos. As garantias dos particulares contra os abusos da Administração Pública eram efectivadas pelos tribunais administrativos, sendo que estes só podiam anular o acto ilegal da Administração.
                Nos finais do século XIX, inícios do século XX, dá-se a transição do Estado Liberal para o Estado Social. Desta feita, o Estado adquire novas funções. Ao contrário do Estado Liberal, que era abstencionista, o Estado Social tem uma administração prestadora. Dá-se uma maior separação dos poderes. O Conselho de Estado torna-se num verdadeiro tribunal. Contudo, o poder dos juízes continua limitado, eles continuam a ter somente o poder de anulação.
                Contudo, a partir dos anos 90, os juízes tornam-se num órgão independente e com plenos poderes em relação à Administração. A protecção dos direitos dos particulares torna-se efectiva. A subsequente europeização surge através de uma integração vertical (acção conjugada de órgãos comunitários intensificado pelo aparecimento de fontes europeias em matéria de contencioso) e de uma integração horizontal (convergência crescente do contencioso administrativo dos diferentes países da União Europeia).
              Debruçando-nos, agora, sobre a posição subjectivista em si, interessa referir alguns aspectos da sua internacionalização por alguns países da Europa.
               Em Itália, os particulares têm vindo a ser considerados titulares de posições jurídicas substantivas nas relações com a Administração. No entanto, na ordem jurídica italiana há um aspecto particular que importa acrescentar: há uma distinção entre direitos subjectivos, neste caso, as posições jurídicas dos particulares são apreciadas por tribunais comuns, e interesses legítimos, sendo apreciadas por tribunais administrativos (artigos 24º e 113º da Constituição Italiana). A distinção feita no artigo 266º, nº1 da Constituição da República Portuguesa provém do direito italiano.
             Em Espanha, García de Enterría defende a existência de duas modalidades de direitos subjectivos nas relações jurídicas dos particulares com a Administração: direitos subjectivos clássicos ou activos e direitos novos ou reactivos. Estes últimos verificam-se quando um particular vê-se prejudicado por actuações ilegais da Administração, adquirindo um direito subjectivo à eliminação dessa actuação ilegal, através da conjugação dos elementos do prejuízo e da ilegalidade. No artigo 24º da Constituição Espanhola está consagrada a certeza do particular enquanto parte no processo.
        Em França, por sua vez, apesar da posição objectivista ter tido aqui origem, a interpretação das normas e princípios constitucionais feita pelo Conselho Constitucional também tem fomentado a substantivização da posição dos particulares face à Administração e o seu reconhecimento como parte.
              Por último, na Alemanha, os indivíduos são titulares de direitos face à Administração, tendo havido a elaboração da chamada teoria da norma de protecção, em que o particular é parte e há protecção das posições jurídicas individuais (artigo 19º, nº4 da Lei Fundamental). O caso alemão teve uma grande influência no ordenamento português.
           Evidentemente, temos, agora, que nos reconduzir ao caso português. Em Portugal, embora a Administração estivesse subordinada ao princípio da legalidade e apesar de ser possível os particulares exigirem à Administração o respeito pelos seus direitos, através de normas, em causa estavam os interesses dos particulares e o interesse público da Administração, ou seja, a tendência era para uma posição objectivista. Contudo, a doutrina evoluiu, sendo que a posição do particular face à sua relação com a Administração é respeitada. Segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, tal resulta do facto de vivermos numa República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana, cujos direitos fundamentais vinculam directamente os poderes públicos, sendo que, actualmente, consagra-se a posição subjectivista no ordenamento português.
                De facto, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 266º, nº1 consagra o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Este princípio engloba tanto os direitos subjectivos públicos como os direitos subjectivos privados, devendo-se tal ao facto de o interesse público dever ser observado de acordo com este mesmo princípio, já que nele se enquadram tanto os direitos subjectivos públicos como os direitos subjectivos privados (o interesse público e o respeito pelos direitos dos particulares são realidades indissociáveis no Estado de Direito).
           A Constituição da República Portuguesa (CRP) equipara os direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, acima referidos, pois ambos são situações jurídicas materiais dos indivíduos. Para o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa e o Prof. André Salgado de Matos, o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos tem relevância a nível da imparcialidade (impõe que as posições jurídicas sejam ponderadas entre si com os interesses públicos em presença para a decisão do caso concreto) e a nível da proporcionalidade (proíbe que como resultado dessa ponderação se adoptem meios de prossecução do interesse público que lesem de forma inadequada e desnecessária as posições subjectivas dos particulares).
              Através do princípio em questão verifica-se que não basta o cumprimento da lei para haver a tutela dos direitos e interesses. São necessários mais mecanismos, os quais estão predispostos na legislação. Alguns exemplos: art.20º, nº1 da CRP (acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva); art.22º da CRP (doutrina e jurisprudência entendem que a responsabilidade civil vale tanto para Estado como para entidades públicas); art.268º, nº3, 4 e 5 da CRP (direitos e garantias dos administrados); art.4º do Código do Procedimento Administrativo – CPA - (princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos); art.12º do CPA (princípio do acesso à justiça).
             Para o Prof. Vasco Pereira da Silva, a distinção entre direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos reside não na qualidade, mas na quantidade, a questão está na aplicabilidade do conteúdo, o qual varia consoante a maior ou menor amplitude do dever a que a Administração está obrigada perante o particular.
       Percebe-se, deste modo, que os particulares devem ser vistos como activos colaboradores na realização dos fins do Estado e do Direito, equipados com poderes jurídicos e vistos como sujeitos de Direito. O Direito Administrativo deve legitimar a intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica dos particulares, pois dá ao particular a possibilidade deste se insurgir face aos actos da Administração que lesem os seus direitos individuais: o particular pode dirigir-se aos tribunais administrativos e requerer a anulação de um acto administrativo lesivo dos seus direitos. A este processo dá-se o nome de recurso de anulação. Relativamente a este aspecto, resta ainda referir que o Direito Público Subjectivo é essencial para o Direito Administrativo, pois faz perceber a perspectiva do particular, relacionando-se com a relação jurídico-administrativa.
                Posto isto, há, finalmente, que referir a posição unitária defendida pelo Prof. Vasco Pereira da Silva e de matriz alemã: a teoria da norma de protecção.
                Esta teoria defende a atribuição de direitos aos indivíduos pelo ordenamento, sendo que esta atribuição deve ser feita de duas maneiras:
a)      Pela atribuição de um direito, ou seja, o legislador atribui um direito: norma atributiva de direito ou norma de autorização;
b)      Pela imposição de um dever, ou seja, o legislador ordena uma determinada conduta: norma imperativa, norma obrigando a uma conduta determinada ou norma criadora de dever.
 Além disso, para que a norma origine um direito subjectivo, é necessário que preencha três requisitos:
1)         Tenha carácter vinculativo;
2)      Seja decretada a favor de pessoas determinadas (para a satisfação de interesses individuais e não apenas do interesse público, sendo que o problema de quem beneficia da norma tem a ver com a interpretação da norma, que deve ser feita de acordo com os parâmetros da Constituição e que parte-se do pressuposto que a norma que abrange todos também abrange cada um);
3)      Tenha como resultado a possibilidade de os particulares poderem recorrer por causa dela (face a um direito lesado, os particulares podem recorrer aos tribunais administrativos, graças à norma e exigir deles a conduta devida).
Deve-se ter ainda em conta que para o Prof. Vasco Pereira da Silva, o indivíduo é titular de um direito subjectivo relativamente à Administração se de uma norma (visando interesse público e interesse privado) resultar uma vantagem intencionalmente concedida ao particular ou a um benefício decorrente de um direito fundamental. Para o Professor, a teoria da norma de protecção deve ser contemplada no âmbito dos direitos fundamentais.

Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva “Para um Contencioso Administrativo dos Particulares (esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de anulação)”;
Diogo Freitas do Amaral “Curso de Direito Administrativo” Volume I;
Diogo Freitas do Amaral “Curso de Direito Administrativo” Volume II;
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos “Direito Administrativo - Introdução e Princípios Fundamentais”.

Diana Furtado Guerra
Nº 21984

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