domingo, 28 de outubro de 2012

O interesse público como conceito indeterminado: Breves reflexões como critério da acção administrativa

Para não tornar a minha apreciação nem demasiado massuda nem demasiado sintética, limitarei a minha análise a singelas considerações que, oportunamente, desenvolverei como parte integrante num artigo mais aprofundado. Por agora, falarei brevemente do interesse público como um conceito indeterminado. 

Na qualidade indicada, podemos afirmar que o interesse público nos suscita prima facie uma relatividade terminológica, mas uma ponderação mais rigorosa permite-nos reflectir sobre uma outra face do conceito, eminentemente técnica. Quer isto dizer que a natureza da expressão não emana simplesmente da percepção normativa, mas sobretudo dos efeitos resultantes do seu entendimento juridico-administrativo, o que, a título de defesa (se é que lhe podemos designar tal honra), contribui largamente para a injusta "ingratidão" da tarefa administrativa.
Ora, numa primeira vertente, a abstracção terminológica relaciona-se com o processo de interpretação do contexto normativo disposto, em função da sua teleologia. O verdadeiro dilema da questão interpretativa reside em fazer prevalecer o sentido natural da linguagem ou o sentido técnico-jurídico da mesma. No entanto, no que toca à satisfação das necessidades da colectividade (e é essa a suma finalidade da Administração Pública), um dado é certo: É impossível objectivar o interesse público, qualquer que seja o critério utilizado para o efeito. Explicitamente, o âmago do interesse público é de tal forma relativo que a sua determinação resultaria numa rigidez do complexo administrativo, tendente ao afastamento dos interesses de pendor mais específico. Favoravelmente, Odete Medauar apresenta-nos a noção de "situação de heterogeneidade", que implica uma "impossibilidade na prefixação do interesse público". A imposição de uma expressão fixa para o efeito não é conveniente nem para a Administração nem para o administrado: Ambas as partes seriam forçadas a vincularem-se a uma "cláusula geral de restrição", colocando em causa não só todo o sistema administrativo como os princípios fundamentais democráticos essenciais ao desenvolvimento adequado do Estado Social de Direito. Neste sentido, o conceito deve ser mantido numa indeterminação controlada pela legalidade administrativa (266º/2 CRP): A lei não deixa de ser o instrumento de efectivação da soberania colectiva e, em bom rigor, é essa indeterminação que coaduna o plano jurídico-politico com o plano socio-económico no cumprimento da demanda administrativa.
No mesmo fio de conduta, o interesse público é tecnicamente abstracto: Na execução da acção administrativa, deve o interesse público incidir sobre os administrados, sem prejuízo das garantias de tutela constitucionalmente resguardadas (268º CRP). Para este efeito, a Constituição não é inerte, pelo que a posição dos particulares face à acção administrativa não é meramente passiva. Antes, o mecanismo de protecção é bem activo: Com o direito ao recurso contencioso de anulação (268º/4 CRP), o particular pode interpor ao órgão que emanou o acto (36º/1-c CPTA) um recurso que, através de uma sentença, o destrua juridicamente. Na matéria, entende a jurisprudência que esse direito não só é tutelado pelo 268º/4 CRP, mas também pelo regime geral do artigo 17º CRP, em sede de integração analógica como direito fundamental.
A despeito dessa apreciação, a norma programática constante do artigo 266º CRP é essencialmente vista sob uma óptica de conciliação, dado que consagra em si o objectivismo e o subjectivismo como configurações da orientação administrativa na Constituição de 1976. O 266º/1 CRP segue o espectro objectivista a par do princípio da legalidade administrativa. Programando a prossecução do interesse público como objecto nuclear visado pela Administração Pública, deixa como que uma cláusula aberta no sentido de munir o processo administrativo de uma desafogada margem de manobra na busca a essa finalidade (e a tantas outras na incumbência da Administração, no entanto, só nos importa o interesse público para o efeito). Os subjectivistas, por outro lado, vislumbram o artigo 266º/2 CRP como a indicação da tendência da Constituição em defesa da sua tese. Refere este último que "Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé". O subjectivismo procura, dentro do próprio enunciado constitucional, garantir o respeito devido aos particulares no agere administrativo através de um elenco de direitos fundamentais não só considerados no dito diploma, como no restante mundo normativo que gravita em seu torno.
O 266º CRP parece-nos, então, uma norma de equilíbrio; todavia, o enunciado é algo teatral: Não tem qualquer utilidade prática e os efeitos (se é que tenha alguns que mereçam relevância jurídica) são manifestamente "inofensivos".

Em jeito de conclusão (e de um escopo mais imparcial), as garantias e direitos constitucionais que amparam o particular da indeterminação terminológica e técnica do interesse público como conceito indeterminado são uma forma de expressão indirecta da imperfeição e fragilidade dos mecanismos da Administração Pública (uma vitória assinalável a favor do objectivismo). O que está em causa não é o enquadramento categórico do interesse público ou a sua inserção numa esfera mais ou menos ampla, mas sim todo um processo de entendimento e uma batalha constante até se alcançar o verdadeiro interesse da colectividade, livre dos vícios nos mecanismos estatais ou na própria sociedade em si, frequentemente afecta ao carreirismo e à corrupção.


Paulo Fernando Ramos
Nº 22511


Fontes 

REIS, António César Caúla. O interesse público no processo de defesa dos particulares: Aquisições de uma infância difícil?".
SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobrea  supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais.
REBELO DE SOUSA, Marcelo. Lições de Direito Administrativo. 
FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de Direito Administrativo - Volume I.

Diplomas

Constituição da República Portuguesa
Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos
  

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